sexta-feira, 25 de março de 2016

Primeira tentativa de ascensão ao Cerro Mercedario (2009)


Texto por: Marcelo Delvaux

Relato da ascensão realizada em fevereiro de 2009.


Em 2009 eu tinha 10 dias livres na época do Carnaval e resolvi subir o Mercedário, uma montanha localizada ao norte do Aconcagua e que, com seus 6770 m, é a quarta mais alta dos Andes. Chegar na montanha já era meio complicado, pois requeria, no mínimo, 2 dias: seria necessário ir até Mendoza, depois para San Juan e, de lá, para uma vila chamada Barreal, que só tem dois ônibus diários, um pela manhã e outro pela noite. Depois, mais 2 horas em um 4x4 para chegar até o refúgio, localizado a 3000 m. Considerando-se que voltaria ao Brasil depois, a ideia era tentar subir bem rápido, em 6 ou 8 dias, no máximo, reservando outros 2 dias para o retorno. O principal fator que poderia atrapalhar seria o clima pois, caso estivesse ruim, não poderia ficar muito tempo esperando.

Eu cheguei no refúgio da Laguna Blanca (3000 m), ponto de partida para a subida ao Mercedario, em um domingo ensolarado, com céu azul e sem ventos. O tempo permaneceu assim por 2 dias, até eu montar o acampamento base a 3900 m.  


Já estava preocupado até quando o tempo bom iria durar, pois o clima no Mercedario é tão instável quanto no Aconcagua. No terceiro dia, quando fui fazer o primeiro porteio para estabelecer o acampamento avançado em Pirca de Indios, o tempo mudou e começou a nevar. No quarto dia, quando me mudei do acampamento base para o acampamento avançado, a 5200 m, tive que montar minha barraca debaixo de nevasca. Mas ainda tinha 4 dias pela frente para o tempo melhorar...


Foram 4 dias preso na barraca, nevando quase sem parar. De vez em quando precisava sair para afastar a neve com o piolet, pois ela já estava comprimindo a barraca. Eu tive que "racionar" o único livro que eu tinha em mãos, o clássico "No ar rarefeito", estabelecendo o número de páginas que poderia ler por dia, para não ficar sem nada para fazer (além disso, eu ouvia música e derretia neve para fazer água).

No terceiro dia de minha "prisão domiciliar" o tempo começou a esquentar, apesar de não parar de nevar. Eu interpretei isso como uma possibilidade de mudança de tempo e resolvi me preparar para um ataque ao cume na madrugada. Acordei às duas e meia da manhã e estava nevando. Cochilei mais uma hora e olhei para fora novamente: havia algumas estrelas no céu! Então, resolvi partir para cima. Quatro e pouco da madrugada saí. A neve acumulada chegava até o joelho e, com muito esforço, subi pela encosta nevada, até que percebi que havia alguma coisa estranha. Era a visibilidade que estava cada vez pior. Ao apagar a lanterna para enxergar a silhueta de umas rochas no alto percebi que não dava para ver mais nada: uma nova tempestade estava se formando! Desci rapidamente e, quando cheguei na parte baixa, o vento e a neve que caía já haviam apagado minhas pegadas e não era possível enxergar mais do que 3 ou 4 metros. Lembrei-me do episódio do livro "No ar rarefeito", onde as pessoas passaram a noite ao relento no colo sul do Everest, a poucos metros das barracas, debaixo de uma tempestade. Mas eu havia me prevenido e ligado meu GPS antes de sair, o que me permitiu localizá-la sem problemas.


Eu tinha somente mais um dia para o tempo melhorar, já que no dia seguinte teria que descer. Meu quarto dia no acampamento avançado começou ainda mais quente que o anterior. Parecia que a camada de nuvens estava cada vez mais fina, refletindo o calor do sol em cima da neve. Aconteceu, então, um impressionante fenômeno de inversão térmica A temperatura começou a aumentar após o meio-dia: estava 32 graus dentro da barraca; de repente passou para 36, 38, 40 graus! E nevando lá fora. Não dava para sair, o jeito era tirar a camisa e curtir o calor. Aproveitei para tomar um sorvete liofilizado que eu havia levado. Mas, apesar disso, não parava de nevar...

O tempo só abriu às 18:00, desta vez para valer. O problema é que não haveria tempo para a neve acumulada derreter. Eu sabia que teria neve pelo joelho dali até o cume. Mas iria tentar assim mesmo. Outra preocupação era com o vento. Depois de vários dias de tempo ruim, geralmente forma-se uma zona de baixa pressão que traz ventos fortes.

Acordei às 3 da madrugada e estava bastante frio, por isso resolvi ficar mais um tempo na barraca e sair um pouco mais tarde, para ficar menos tempo exposto às baixas temperaturas. Mas às 03:30 não resisti: coloquei a cabeça para fora da barraca e vi um tapete de estrelas no céu. Aparentemente, não estava ventando muito. Vesti-me rapidamente, tomei meu café da manhã, cereais com leite quente, biscoitos e frutas secas e, pouco depois das 4 horas, parti para minha última oportunidade de ataque ao cume.

Mais uma vez subi com neve até os joelhos. Não havia mais rota definida para subir a montanha, o jeito era fazer um ziguezague e procurar alguns lugares onde havia um pouco de cascalho misturado à neve, que congelava e formava uma camada de gelo menos fofa. Apesar do tempo aberto, a noite estava escura. Como estava sozinho na montanha e a neve cobriu tudo, tinha que descobrir a rota por conta própria. Alcancei uma crista e comecei a subir mais um lance de neve extremamente fofa, até os joelhos. Percebi que o vento estava cada vez mais forte, mas até então estava suportável e eu estava muito bem abrigado.

Ao amanhecer alcancei outra aresta, próximo de um local conhecido como La Hoyada. Já estava a mais de 5800 m e ainda teria uns 900 m para o cume. Foi quando eu peguei o pior vento de minha vida, nunca vi nada parecido. Estava em um local bem exposto e o vento soprava para fora da montanha. A neve fofa converteu-se em uma vantagem, pois me permitia ficar imóvel para suportar as rajadas. Percebi que, se soltasse os bastões, eles seriam carregados. O barulho do vento era realmente assustador, parecia um grito. De repente, algo inconcebível aconteceu: o vento arrancou meu gorro junto com minha lanterna. O gorro estava apertado em minha cabeça e eu estava, justamente, reclamando disso. Mesmo assim o vento o arrancou, debaixo do capuz de minha jaqueta. Por sorte, a lanterna caiu na neve e consegui recuperá-la. O gorro se foi...


Ainda tentei subir mais alguns metros, mas vi que seria impossível enfrentar aquele vento. Como o vento soprava para fora da montanha, até para descer estava difícil. Eu jogava meu corpo para frente e ficava parado, era como se tivesse alguém me sustentando no ar. O pior é que eu não podia largar os bastões ou tirar as luvas para pegar meus óculos de neve, sob o risco de saírem voando. Já havia amanhecido e a claridade estava me incomodando muito. Com muito custo comecei a descer e só depois de bastante tempo é que consegui, já na parte baixa, sentar e colocar os óculos. Cheguei na barraca e tentei cochilar um pouco, mas o vento não me deixava dormir. Eu olhava para a crista da montanha e via o "viento blanco" em ação, levantando neve e gelo a muitos metros de altura. Quando vi que seria impossível dormir, abri os olhos e percebi que havia uma névoa dentro da barraca. Na verdade, era minha vista que havia sido afetada pelo vento e pela claridade, durante o período que fiquei sem os óculos. Fiquei usando óculos dentro da barraca e meus olhos só foram melhorar umas duas horas depois. Resolvi descer a montanha neste mesmo dia e, às seis horas da tarde, cheguei ao refúgio na Laguna Blanca.

Mesmo sem ter feito cume foi uma experiência fantástica. Fiquei 8 dias em uma montanha imensa, absolutamente sozinho, tendo que descobrir toda a rota, que se encontrava coberta pela neve, por minha conta. Voltei fascinado com a região. O Mercedario fica em uma cordilheira chamada La Ramada, que possui outros três picos com mais de 6000 m. Ao lado desta cordilheira está outra, chamada Ansilta, com vários picos acima de 5000 m. É uma região muito pouco explorada com inúmeras possibilidades de ascensões, inclusive para a abertura de novas rotas. Barreal, por sua vez, é uma vila bastante agradável, situada a 1700 m de altitude. Lá é bastante quente no verão e é possível intercalar as escaladas com um descanso em alguma pousada, curtindo o calor em uma piscina. Tem tudo para ser tornar um "point" de alta montanha. Eu recomendo muito!

Álbum de fotos:
Expedição ao Mercedario (6770 m) 2009

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