Na temporada de 2010 resolvi voltar ao Cerro Mercedario, na Argentina, a
quarta montanha mais alta dos Andes, com 6770 m de altitude, localizada ao
norte do Aconcagua, na província de San Juan. Após a tentativa frustrada do ano
anterior, quando fui obrigado a descer devido as nevascas e fortes ventos,
resolvi adotar uma estratégia mais ousada e, por isso mesmo, mais arriscada: já
conhecendo a instabilidade e imprevisibilidade do clima naquela região, a ideia
seria subir o mais rápido possível, caso conseguisse uma janela de tempo bom,
preferencialmente em estilo alpino, sem realização de porteios ou caminhadas de
aclimatação.
Cheguei em Barreal em uma segunda-feira pouco depois do meio-dia.
Olhando os picos das cordilheiras Ansilta e La Ramada, a impressão é que eles
estavam com menos neve do que no ano anterior. Tal impressão se confirmou
quando o Ramón, dono da pousada onde eu estava hospedado e que iria me levar de
4x4 até o refúgio da Laguna Blanca no dia seguinte, me disse que no último
inverno havia nevado menos do que o normal. Após o almoço fui até o centro da
vila consultar a previsão do tempo na internet e a mesma parecia promissora.
Havia uma nevasca prevista para a sexta-feira, mas o final de semana prometia
ter tempo bom. Preparei minha mochila visando otimizar ao máximo o peso, de
modo a conseguir carregar tudo de uma única vez, sem ter que fazer porteios. Só
iria partir para uma estratégia convencional de porteio e aclimatação caso não
estivesse me sentindo bem o suficiente para subir direto. Para tomar esta
decisão, iria monitorar meu nível de oxigênio e meus batimentos cardíacos e
analisar meu apetite e as condições de minhas noites de sono.
Parti para a montanha na terça-feira de manhã. Por volta das 11:30
chegamos no refúgio da Laguna Blanca, situado a pouco mais de 3000 m. Combinei
com o Ramón de me buscar ali na terça-feira seguinte. Meu objetivo neste
primeiro dia era subir direto para Piedras Coloradas, a quase 3900 m, onde iria
montar meu primeiro acampamento. O céu estava limpo e fazia calor, mas o vento
soprava algumas vezes bem forte. Coloquei a mochila nas costas e iniciei a
subida lentamente, procurando encontrar o ritmo adequado. Mesmo tendo
economizado no peso, a carga que eu levava ainda era considerável, já que tinha
provisões para 8 dias, além de todo equipamento de alta montanha. Este trecho
inicial é tranquilo, correspondendo a uma trilha bem larga que sobe
gradualmente em “zig-zag” a quebrada do rio formador da Laguna Blanca. Alguns
atalhos unem as curvas do “zig-zag”, economizando uns bons metros de caminhada.
Após 2 horas cheguei em Guanaquitos (3750 m), o primeiro acampamento da rota
normal. Neste ponto, deve-se abandonar a trilha principal, que se dirige ao
glaciar del Caballito, e seguir subindo à direita, acompanhando um outro curso
de água.
Pouco acima de Guanaquitos aproveitei algumas pedras ao longo do riacho,
que estava mais cheio do que no ano passado, para atravessá-lo. Após subir mais
um pouco pela margem, cheguei no único local da trilha para Piedras Coloradas
que oferece algum tipo de obstáculo: um trecho mais inclinado de pedras soltas
ao lado do rio obriga o caminhante a subir pela encosta íngreme e desbarrancada
à esquerda, para contornar as pedras e retornar ao rio mais adiante.
Cheguei em Piedras Coloradas às 16:00, com pouco mais de 4 horas de
caminhada. Este é um local bastante agradável para se acampar, com água
corrente em abundância e temperaturas não muito baixas à noite. Na verdade,
estava relativamente quente para aquela altitude, o que explicava o grande
volume de água no riacho. Mas isso não era garantia de tempo bom, o clima ali
poderia mudar repentinamente. Além do mais, às vezes ventava bem forte e eu não
me lembrava de ter enfrentado vento nas duas noites que havia passado neste
acampamento no ano passado. Estava me sentindo incrivelmente bem, praticamente
não sentia nenhum efeito da altitude. À noite meu oxigênio estava em 95% e os
batimentos cardíacos abaixo de 60. Decidi, então, partir direto, no dia
seguinte, para a Cuesta Blanca, uns 600 m acima.
A quarta-feira também amanheceu com tempo bom. O céu azul e o calor do sol davam mais ânimo à primeira subida forte que eu iria enfrentar nesta ascensão. Seria, porém, um dia curto, eu estimava fazer aquele trecho em umas 3 horas. Acabei gastando pouco mais de 2 horas, o que me deixou bastante otimista, confirmando que minhas condições físicas estavam excelentes. A trilha que parte de Piedras Coloradas se localiza do outro lado do riacho. Mas eu acho bem mais agradável subir pelo lado onde eu havia acampado: além do percurso ser menor, já que é uma subida mais direta, percorre-se um longo trecho cheio de pequenos cursos de água, que irão formar o riacho mais abaixo. Mais acima se chega a um local repleto de pedras em um aclive de cascalho bem fácil de caminhar, permitindo ganhar altura rapidamente. Uma guinada à esquerda conduz de volta à trilha, em um ponto onde aparecem alguns blocos de gelo na encosta. Surge, então, uma primeira subida mais íngreme e, após o reencontro com o riacho, o caminho segue durante algum tempo sua margem até a principal subida do dia: um longo “acarreo”, à esquerda. Um “acarreo” é um tipo de encosta formada por muitas pedras soltas e cascalho instável. Neste ponto é preciso estar atento aos totens de pedra para encontrar o “zig-zag” da trilha, porque, senão, é um martírio para subir.
A quarta-feira também amanheceu com tempo bom. O céu azul e o calor do sol davam mais ânimo à primeira subida forte que eu iria enfrentar nesta ascensão. Seria, porém, um dia curto, eu estimava fazer aquele trecho em umas 3 horas. Acabei gastando pouco mais de 2 horas, o que me deixou bastante otimista, confirmando que minhas condições físicas estavam excelentes. A trilha que parte de Piedras Coloradas se localiza do outro lado do riacho. Mas eu acho bem mais agradável subir pelo lado onde eu havia acampado: além do percurso ser menor, já que é uma subida mais direta, percorre-se um longo trecho cheio de pequenos cursos de água, que irão formar o riacho mais abaixo. Mais acima se chega a um local repleto de pedras em um aclive de cascalho bem fácil de caminhar, permitindo ganhar altura rapidamente. Uma guinada à esquerda conduz de volta à trilha, em um ponto onde aparecem alguns blocos de gelo na encosta. Surge, então, uma primeira subida mais íngreme e, após o reencontro com o riacho, o caminho segue durante algum tempo sua margem até a principal subida do dia: um longo “acarreo”, à esquerda. Um “acarreo” é um tipo de encosta formada por muitas pedras soltas e cascalho instável. Neste ponto é preciso estar atento aos totens de pedra para encontrar o “zig-zag” da trilha, porque, senão, é um martírio para subir.
Vencido aquele obstáculo, atravessei novamente o riacho mais acima e já
pude vislumbrar o imenso anfiteatro que é a Cuesta Blanca, que tem este nome
devido à neve de suas paredes. Na verdade, essa neve não passa de um grande
campo de penitentes e, dependendo das condições da montanha, a subida para a
parte superior da Cuesta Blanca implica na travessia deste típico obstáculo
andino. Mas este ano a quantidade de penitentes era menor e, de longe, dava
para observar a rota contornando o campo de penitentes, ao invés de
atravessá-lo. Que boa notícia, pensei, eu odeio penitentes!
Logo no início da Cuesta Blanca, que é considerada o acampamento base do
Mercedario, eu avistei uma barraca alaranjada e seus dois ocupantes, que logo
vieram ao meu encontro. Eram dois poloneses, o Jerzy Zaborny e sua companheira
Dorota, ou George e Dorothy, como eles traduziam seus nomes para o inglês. O
Jerzy era um montanhista experiente e estava vindo do Aconcagua, estando,
portanto, bastante aclimatado. Estava subindo a montanha lentamente para que a
Dorota também pudesse se aclimatar. Eram gente finíssima e ficamos ali
conversando, despreocupadamente. Eles me disseram que os últimos dias foram de muito
vento, confirmando o que eu havia observado em Piedras Coloradas. Também
falaram que havia uma grande expedição argentina mais acima, que provavelmente
havia atacado o cume no dia anterior. Aliás, os argentinos e os poloneses iriam
protagonizar um dos dramas vivenciados no Mercedario nesta temporada. Mas coisa
pior ainda estava para acontecer, como eu descobriria depois.
Despedi-me dos poloneses, que pretendiam partir para um acampamento
localizado na parte superior da Cuesta Blanca no dia seguinte, e continuei
subindo, já que eu queria dormir no ponto mais alto do acampamento base. Mais
adiante divisei algumas pessoas descendo pela encosta, margeando os penitentes.
Provavelmente eram os argentinos. Uma das pessoas do grupo estava descendo bem
rápido e acabou chegando antes de mim no local onde eu pretendia acampar.
Aproximei-me lentamente e me encontrei com esta pessoa, uma simpática
montanhista de San Juan. Ela me disse que seu grupo era formado por treze
pessoas e que faziam parte de uma expedição organizada pelo governo da
província. Estavam na montanha há mais de dez dias, mas haviam desistido,
devido aos fortes ventos. Seis companheiros já tinham desistido antes e, agora,
o restante do grupo estava descendo. Aos poucos, os demais integrantes foram
chegando e contando sua experiência nos últimos dias. O vento era o grande
vilão daquelas paragens e eu já estava convencido que teria que enfrentá-lo,
caso quisesse tentar o cume.
Pelo menos tive uma boa notícia: havia água corrente na Cuesta Blanca e não
seria necessário derreter neve! Fui até os penitentes com um dos argentinos e
ele me mostrou um ponto onde havia uma fissura no gelo e estava correndo água.
Ele era o mais velho do grupo e me disse, ironicamente, que por ser o mais
velho os outros o mandavam buscar água. Revelou-me, então, que tinha um filho
que havia morrido na face sul do Mercedario. Seu filho trabalhava como guia de
montanha e resolveu subir pela difícil rota da face sul e descer pela rota
normal. Chegando próximo ao cume, desequilibrou-se com o peso da mochila e caiu
para trás, uma grande fatalidade. Mas ele me contou isto com grande serenidade,
sem demonstrar nenhuma revolta ou rancor em relação à montanha. Até brincou,
dizendo que seu outro filho, que também é guia, é muito mais louco e continua
vivo. Isto me comoveu profundamente, me fazendo perceber como algumas pessoas
conseguem superar de forma tão positiva uma perda como esta: lá estava ele,
subindo pela segunda vez a montanha que havia tirado a vida de seu filho.
O pessoal gentilmente me ofereceu comida, dizendo que haviam deixado uma
boa quantidade de suprimentos em dois acampamentos mais acima. Eles tinham uma
carga considerável para levar embora da montanha, inclusive as coisas deixadas
para trás pelos seus companheiros que haviam ido embora primeiro, e parte desta
carga acabou ficando ali na base, aguardando as mulas que iriam buscá-la alguns
dias depois. E foi nesta “operação limpeza” que cometeram um grande equívoco,
responsável pelo drama que eu comentei mais acima: eles acabaram descendo com
os equipamentos que os poloneses haviam porteado para a parte alta da Cuesta
Blanca. Depois deste dia eu não vi mais os poloneses na montanha e achei
estranho. Um outro argentino que eu encontraria dois dias depois, e que também
estava subindo em solitário, me disse que os poloneses desceram porque não
tinham mais gás. Mais estranho ainda, pois era pouco provável que o Jerzy
cometesse um erro destes, calcular mal a quantidade de gás. Só quando voltei a
Barreal e reencontrei os poloneses é que fiquei sabendo o que havia acontecido.
Eles desceram por que ficaram sem suas roupas e equipamentos de alta montanha.
Como eles não falavam nada de espanhol, eu os ajudei a localizar o pessoal em
San Juan e o equívoco se resolveu: suas coisas estavam lá na cidade. Mas a
montanha estava perdida para eles.
Após despedir-me, montei minha barraca e fui preparar um lanche com os
queijos e salames que eles haviam deixado para mim, um luxo naquela altitude.
Pouco depois, tive que preparar uma amarração para minha barraca nas pedras ao
lado, tamanha era a força do vento. É, pensei, mais uma vez terei o vento como
companheiro de montanha. Aliás, este tem sido meu “companheiro acidental” nos
últimos anos e acho que já estou me acostumando com seu mau humor. Consolei-me
olhando para os penitentes ao longe: pelo menos desta vez estou livre de vocês!
À noite aconteceu um fenômeno estranhíssimo. Estava na barraca e comecei
a ouvir um barulho de água. Inicialmente, pensei que poderia ser o vento. Que
nada, ao sair para ir ao “banheiro”, tinha um verdadeiro riacho correndo no
declive que fica abaixo do local onde as barracas do acampamento base
normalmente são armadas. Não entendi porque a água começou a descer neste
horário, o mais lógico seria que isso acontecesse no meio da tarde, com o
derretimento da neve proporcionado pelo sol forte. Mas aquele barulhinho de
água veio em uma hora boa, na hora de dormir... E foi mais uma excelente noite
de sono! Meu batimento ainda estava em torno de 60 e meu oxigênio continuava em
alta, a 92%. Sinal verde para subir, no dia seguinte, diretamente para o
próximo acampamento, Pirca de Indios, a cerca de 5200 m.
A manhã de quinta-feira apresentou-se, mais uma vez, ensolarada e com
céu azul. Mas o vento parecia mais constante e me obrigava a caminhar com uma
jaqueta. Pela frente eu tinha a subida mais difícil desta fase de aproximação,
antes do ataque ao cume: a parede do anfiteatro da Cuesta Blanca, em uma trilha
bastante íngreme e inclinada, com muitas pedras soltas. Gastei umas 4 horas até
Pirca de Índios, onde eu pretendia montar meu último acampamento. Minha ideia
era atacar o cume dali, enfrentado um desnível de mais de 1500 m. Uma das
dificuldades da rota normal do Mercedario, que a torna mais exigente do que a
do Aconcagua, é justamente a localização dos acampamentos avançados. Acima de
Pirca de Indios existem duas possibilidades: La Hoyada (5800 m) e El Diente
(6100 m). O problema é que estes locais são bastante expostos aos fortes
ventos, principalmente La Hoyada, que se localiza na entrada do glaciar
homônimo e é constantemente varrida pelo “viento blanco”. Ou o montanhista se
expõe ao vento para encurtar o ataque ao cume, ou parte de Pirca de Indios
(5200 m). Esta última opção, além do imenso desnível, também oferece como obstáculo
uma grande distância a ser percorrida, bem maior do que aquela que separa o
Nido de Condores do cume do Aconcagua.
Pirca de Indios tem este nome devido aos restos arqueológicos
encontrados ali: pilhas de pedras remanescentes de antigos acampamentos
incaicos! No Mercedario foram encontrados vestígios da presença dos incas até
uma altitude de 6100 m. Eles foram os verdadeiros pioneiros do montanhismo nos
Andes, sendo responsáveis pela “primeira ascensão” de muitos cumes só
escalados, posteriormente, no século XX.
Antes de dormir conferi novamente minhas condições: oxigênio a 85% e
batimento inferior a 70. Depois fiquei sabendo que nesta noite houve um tremor
de terra na montanha. Os poloneses e o argentino que estavam mais abaixo
sentiram o tremor. Eu não percebi nada, talvez já estivesse dormindo. Seria um
prenúncio do forte terremoto que sacudiria o Chile alguns dias depois, já que
ali estávamos bem próximos da fronteira? Isso talvez explicasse o estranho “riacho
noturno” da noite anterior. Provavelmente, também deve ter acontecido um
pequeno tremor naquela noite, liberando a água que se precipitou montanha
abaixo.
Na sexta-feira de manhã o vento estava forte e algumas nuvens surgiram
no céu. Lembrei-me da previsão de nevasca para aquele dia. Antes do meio-dia o
vento melhorou e eu resolvi subir em direção a La Hoyada, para analisar as
condições do trecho que eu iria percorrer de noite, durante o ataque ao cume.
Novamente me sentia muito bem, tão bem que não resisti e subi em ritmo forte,
gastando uma hora e meia para superar os 600 m de desnível até La Hoyada. Em
condições normais eu teria subido tranquilamente, economizando energia, mas eu
parecia uma pilha carregada e estava bastante motivado e feliz por estar de
volta ali. Será que a montanha me daria uma trégua desta vez? Quando comecei a
descer de La Hoyada uma massa considerável de nuvens começou a se acumular nas
partes altas da montanha. Meu ânimo passou a alternar momentos de otimismo e
pessimismo. Se o tempo fechasse de vez e começasse a nevar muito, o cenário do
ano passado poderia se repetir.
Quando estava chegando de volta a Pirca de Índio vi uma pessoa subindo
com uma mochila cargueira. Pensei que era o Jerzy e fui ao seu encontro, mas
era um argentino chamado Jorge, outra figura “gente fina”. Após instalar sua
pequena barraca de vivac, ele foi me fazer uma visita e me contou que, na
semana anterior, ele havia feito uma tentativa de subir o Mercedario, mas foi
forçado a descer, pois seu parceiro de escalada havia passado mal e sua barraca
foi destroçada pelo vento em La Hoyada. O Jorge também era bastante experiente,
tendo escalado o Daulaghiri, no Himalaia, junto com uma expedição catalã em
2003. Falei sobre minha intenção de atacar o cume dali e ele me alertou sobre a
grande distância que eu teria que enfrentar. Ele preferia subir até El Diente e
faria isto em um ou dois dias. Enquanto conversávamos, o vento aumentou e nos
refugiamos em minha barraca. O Jorge me disse, então, que a previsão de tempo
bom seria para o domingo. Como me sentia muito bem, eu estava cogitando atacar
o cume nesta madrugada. Temia que a previsão de tempo bom pudesse não se
concretizar e eu perdesse a oportunidade. Preparei todas as coisas para o
ataque e fui dormir mais cedo. Deixaria para decidir se eu partiria ou não na
própria madrugada de sábado, quando acordasse, observando as condições do
vento. Meu nível de oxigênio havia subido novamente para 90% e os batimentos
cardíacos continuavam baixos, inferiores a 70.
Acordei à meia-noite, quer dizer, fui acordado pelo meu companheiro, o
vento. Praticamente não consegui dormir novamente, com as seguidas rajadas que
sacudiam a barraca. Hoje não vai dar mais, pensei, e desliguei o despertador.
Só voltei a dormir profundamente depois das 03:00, pouco antes do horário que
eu havia planejado levantar. Às 05:00 da manhã acordei novamente e me deu
vontade de partir. O vento continuava, não havia sinal de uma melhora
significativa. Mas minha intuição dizia: “apúrate”. É interessante como, em
grandes altitudes, nós temos às vezes estes vislumbres intuitivos, pelo menos
comigo é assim. Acendi a lanterna, vesti minha roupa, comi meu desjejum e saí
para aquela imensidão estrelada que é a noite na montanha. Sabia que não podia
errar: se eu queimasse este ataque, seria pouco provável que eu pudesse
recuperar minhas forças e teria que descer. Afinal de contas, iria buscar o
cume da quarta montanha mais alta dos Andes com apenas quatro dias de subida!
Comecei a subir pela parede lateral do anfiteatro glacial onde Pirca de
Indios está localizado, buscando os pequenos totens que marcam o caminho. O
vento até que estava suportável, mas temia o que iria acontecer quando o dia
amanhecesse. Não me animava nem um pouco a ideia de me deparar com o verdadeiro
“furacão” do ano passado. Após o local conhecido como Pirca de Indios Superior
avistei, ao longe e bem abaixo, as luzes de uma pequena vila, provavelmente
Barreal. Começou a amanhecer e o sol surgiu imponente, inundando de luz
montanhas e vales. E o vento começou a aumentar. Novamente, gastei cerca de uma
hora e meia até La Hoyada. Chegando lá percebi um cenário totalmente diferente
do dia anterior: havia nevado, conforme a previsão! E o “viento blanco” varria,
impiedoso, aquele ponto exposto da montanha.
Coloquei meu goggle, uma máscara de esqui que oferece mais proteção em
caso de tempestades e ventos fortes, e parti em direção ao “viento blanco”. Foi
a primeira grande batalha do dia, parecia que eu estava no meio de uma forte
nevasca. Só ficaria livre desta situação depois que eu subi pela rota que leva
até El Diente. O Jorge havia me dito que havia um “zig-zag” bem marcado neste
ponto, mas com aquele vento levantando neve e gelo, não dava para enxergar
nada, apenas era possível distinguir a trilha de descida, uma longa e inclinada
reta que levava diretamente até La Hoyada. Não tive alternativa, tive que subir
por ali. Forte, muito forte, é o mínimo que eu posso dizer para descrever esta
subida que, na verdade, não deveria jamais ser utilizada como subida. Somente
consegui encontrar o “zig-zag” bem acima de La Hoyada. Neste ponto pude
respirar um pouco mais aliviado, já que a rota se tornou mais fácil e o “viento
blanco” havia ficado para trás.
A longa subida até El Diente foi vencida sem maiores surpresas. Devo ter
gastado umas duas horas e meia neste trecho. Uma hora mais e cheguei no que
considero o ponto crítico da rota normal do Mercedario: após mais de cinco
horas de subida, avista-se o falso cume ainda muito longe. A rota, agora, segue
pela parte superior do glaciar La Hoyada, em um trecho inclinado repleto de
pedras soltas. Na medida em que se sobe, o terreno fica pior e mais instável. É
uma longa travessia paralela ao glaciar que lembra, vagamente, o Gran Acarreo
do Aconcagua. Qualquer deslize pode significar rolar montanha abaixo. Imagino
que muitos desistem ali. Em alguns pontos, devido à forte inclinação, a neve se
acumula e, ao se compactar, vai se transformando em placas de neve dura ou gelo
que devem ser cruzadas em diagonal. Em uma dessas travessias a neve estava tão
dura que não dava para passar fazendo degraus horizontais chutando com a ponta
da bota, onde seria possível pisar com uma certa estabilidade. O jeito era
calçar os crampons. O problema era que isto significava parar no meio do vento,
ou seja, ficar exposto ao frio. Mas não havia alternativa. Coloquei rapidamente
os crampons, atravessei a neve dura, e continuei sem descalçá-los, pois não
queria parar novamente e havia outros trechos com neve mais adiante.
Depois de algumas subidas fortes, o falso cume ficou mais próximo e a
rota desapareceu, confirmando minha tese que a desistência neste trecho deve
ser constante, deixando poucas marcas no caminho. Eu sabia que teria que seguir
em direção ao falso cume, sem subir até o topo, para então buscar o cume
verdadeiro, que deste ponto ainda não era visível. Havia duas alternativas:
continuar subindo à esquerda em direção ao falso cume ou subir mais à direita
em uma linha mais suave. Olhei para frente e vi o glaciar subindo abruptamente,
em direção ao ponto onde eu imaginava que o cume verdadeiro se localizava.
Então me decidi: vou subir pelo glaciar, fazendo uma variante da rota normal.
Para chegar ao glaciar também havia duas opções: como eu estava na
encosta rochosa acima do mesmo, bastaria descer à direita, mas eu não queria
perder altitude. A outra opção era seguir adiante até o ponto em que a encosta se
encontrava com o glaciar. Foi o que fiz e esta foi a parte mais sofrida de
todas. Em vários pontos havia formações rochosas atravessando o caminho,
formando grandes desníveis em direção ao glaciar. Era por isso, certamente, que
a rota normal seguia em direção ao falso cume: era uma subida mais íngreme em
um cascalho instável, mas sem grandes riscos. Onde eu estava havia mais perigo
de uma queda, que poderia ser fatal. Além do mais, eu estava com os crampons,
que resvalavam a todo momento nas rochas. Mesmo assim não me animava em parar
no vento para tirá-los, já que no glaciar teria que colocá-los de novo. Foi,
sem dúvida, o trecho em que mais me cansei.
Depois de muito esforço cheguei no glaciar. Para minha alegria, a neve
estava bem dura, perfeita para se ganhar altitude rapidamente. Eu não tinha nem
ideia de como era aquele glaciar. Olhando para cima, uma grande greta me
espreitava como uma imensa boca, aberta e ameaçadora. Comecei a subir em
direção ao lado direito da greta. Minha intenção era atravessar a linha da
greta em um sentido perpendicular, para evitar andar na borda de uma possível
parte da greta encoberta pela neve. Mas isto significava subir em linha reta e
a inclinação começou a aumentar cada vez mais. Neste momento não sentia mais o
vento, nem o cansaço das últimas duas horas. Novamente me senti revigorado e
com uma grande energia, física e mental, para superar aquela situação. Eu era
pura concentração, não sei descrever o que me passou pela mente a partir de
então...
Quando já estava bem acima da greta, tomei uma diagonal para a esquerda
para tentar suavizar a inclinação. O interessante quando se sobe por um glaciar
com uma forte inclinação é que não dá para ver nada quando se olha para cima,
apenas uma borda arredondada, é como caminhar sobre a superfície de uma bola.
Quando a diagonal para a esquerda se tornou muito íngreme, inverti a direção e
tomei outra diagonal para a direita. Depois de um tempo, me virei para cima e,
para minha surpresa, a borda arredondada havia se transformado em uma linha
reta, como se eu fosse chegar na borda de um precipício. Estaria chegando no
cume? Olhei para os lados e percebi que estava mais alto que tudo ao meu redor,
inclusive do falso cume, lá longe, à minha esquerda. Mais uns passos e me dei
conta que não havia chegado no cume, mas em uma crista no alto do glaciar, que
se precipitava diretamente em direção à face sul da montanha. Tenho a impressão
que a rota da face sul termina neste mesmo lugar. Olhando para a esquerda vi o
cume verdadeiro, uns trinta metros, no máximo, acima daquele ponto. Caminhei
extasiado, e exausto, por aquela crista fantástica. Olhei para o sul: lá
estava, imponente, o Aconcagua. Aos meus pés descortinava-se a visão dos outros
gigantes da cordilheira La Ramada. Ainda não estava no cume, mas sabia que
havia conseguido!
Cheguei ao lado do cume, tirei minha mochila e comecei a ensaiar algumas
fotos. O vento deu uma diminuída, o que me permitiu tirar minhas luvas
“mitten”. Incrível como consegui ficar uns 20 minutos ao lado do cume, sem
nenhuma ansiedade em chegar até lá, tirando minhas fotos tranquilamente e
apreciando a vista. Em seguida, subi os metros finais e pude curtir aquele
incrível visual de 360 graus que o cume oferece. Foram, aproximadamente, oito
horas e meia até lá.
Devo ter ficado mais de uma hora no cume. Como nos Andes argentinos,
nesta época, escurece depois das 21:00, eu tinha bastante tempo para a descida.
Comecei a descer pouco depois das 15:30 por uns “acarreos” que se tornaram
terríveis após o falso cume. Até chegar na trilha da rota normal tive que
enfrentar muita pedra solta em lugares que davam a impressão que iriam
desmoronar, caso eu fizesse algum movimento brusco.
Antes de chegar em El Diente minha água acabou e a sede começou a me
incomodar. Para descer para La Hoyada sai da rota e peguei um caminho mais
direto que, em poucos metros, se transformou em mais uma descida perigosa e
instável. A sede se transformou, então, em algo desesperadamente insuportável.
Eu via lá embaixo todo aquele gelo do glaciar e não via a hora de chegar em
minha barraca e preparar um suco. Mas a progressão era lenta, apesar de estar
descendo, pois tinha que escolher bem meus passos naquele trecho íngreme.
Chegando próximo a La Hoyada não aguentei: desviei meu caminho para o
glaciar. Já era final de tarde e, com o calor do sol, o gelo estava úmido e brilhante,
uma tentação para quem está sedento! Por baixo do gelo era possível escutar a
água correndo. Bati violentamente com meus pés nas placas de gelo, na esperança
de encontrar água, mas a mesma estava em uma profundidade inalcançável por este
método. O jeito era quebrar o gelo em pequenos pedaços e colocá-los na boca
para derretê-los. Fiquei uns vinte minutos sentado ali, descansando e tentando
me hidratar um pouco. Até que deu para enganar um pouco a sede.
Após sair de La Hoyada e reencontrar a trilha, pude finalmente relaxar,
já que agora o caminho era bem mais fácil, e comecei a última grande descida
até Pirca de Indios. Desci bem devagar, curtindo o visual. Mas também não dava
para ir mais rápido, estava realmente bem cansado após mais de 12 horas de
esforço contínuo, sem contar a parada no cume, e a sede voltou a me perturbar.
Finalmente, cheguei a Pirca de Indios e o Jorge, ao ouvir meus passos, saiu de
sua barraca para me cumprimentar e me entregar um litro de suco que ele havia
feito para mim! Não poderia esperar nada melhor do que isso... Conversamos
rapidamente sobre o cume e eu fui para minha barraca. Ainda tive que
providenciar minha refeição antes de poder descansar.
No domingo me dei ao luxo de dormir até depois das 09:00. O vento não
havia melhorado e, para piorar, a noite havia sido extremamente fria. Ainda bem
que eu resolvi atacar o cume ontem, pensei, pois hoje teria o mesmo vento com
uma temperatura mais baixa ainda. Vi que o Jorge estava preparando suas coisas
para subir para El Diente. Fui até ele me despedir e desejar-lhe boa sorte. Às
11:00 da manhã já estava pronto para descer a montanha. Com um pouco de sorte
poderia chegar em Barreal naquele mesmo dia.
Desci tranquilamente, curtindo a montanha. Esta é uma região dos Andes
que eu gosto bastante e é incrível como, sem nenhuma razão aparente, nós nos
sentimos tão bem em determinados lugares! Fiz duas paradas nos locais onde
havia acampado e, por volta das 16:00, já estava no refúgio da Laguna Blanca. O
desafio, agora, era conseguir um transporte para Barreal. A única alternativa
era torcer para que alguma caminhonete da empresa que tem uma mina naquela
região passasse pela estrada ao lado do refúgio. Meia hora depois vi uma
caminhonete branca e corri para a estrada. Infelizmente, vinha no sentido
contrário e ia em direção à mina. Mas o motorista me disse que ia se comunicar
por rádio para o escritório da empresa, pedindo que eles chamassem o Ramón lá
em Barreal.
Esperei mais umas três horas e nada. Já estava convencido que teria que
passar a noite no refúgio, quando vi outra caminhonete de cor escura vindo da
Laguna Blanca. Opa, as caminhonetes da mineradora são todas brancas, quem sabe
não é o Ramón, falei para mim mesmo. Mas não queria comemorar antes da hora e
fiquei sentando em frente ao refúgio vendo a caminhonete passar. Se for o Ramón
ele vai vir até aqui, pensei. A estrada sobe por trás do refúgio e eu me virei
para esta subida: se a caminhonete passasse por ali, minhas esperanças teriam
sido em vão. Mas a caminhonete sumiu, não veio até o refúgio, nem fez a volta
atrás do mesmo! Levantei-me e fui ver o que estava acontecendo. A caminhonete
estava manobrando para, aparentemente, retornar em direção a Barreal. Corri,
pensando que o motorista estava voltando. Mas a caminhonete parou e saíram três
pessoas de dentro. Uma delas pulou na caçamba e começou a sacar umas mochilas
cargueiras. Caminhei em sua direção e esta pessoa levantou a cabeça e exclamou
assustado: “¿Marce, qué estás haciendo aquí?”. Era o Ramón. Não havia recebido
a chamada de rádio prometida pelo motorista da mineradora, mas estava trazendo
uma dupla de montanhistas de Buenos Aires para escalar o Mercedario.
Que sorte, comemorei, pensando que minha relação com aquela montanha
terminava ali, pelo menos desta vez. Mal sabia que, naquele momento,
iniciava-se o grande drama desta temporada no Mercedario. Troquei algumas
palavras com os montanhistas de Buenos Aires, que planejavam ficar uma semana e
meia na montanha. Eram um homem e uma mulher. Na minha empolgação, não guardei
seus nomes. Alguns dias após meu retorno tive um tremendo susto, ao me deparar
com a seguinte notícia: “Montanhista argentino continua desaparecido no
Mercedario”. Meu sangue gelou, na hora pensei que era o Jorge. Abri a notícia
e, preocupado com o Jorge, li o nome do andinista desaparecido: Javier
Paduszck. Ao ler o restante do texto, que mencionava uma dupla de Buenos Aires,
a “ficha caiu”: eram os montanhistas que eu havia encontrado no refúgio. Isto
se confirmou quando vi a foto do Javier. Fiquei bastante triste e abalado e continuei,
nos dias seguintes, ainda “ligado” à montanha, buscando na Internet alguma
novidade sobre as tentativas de se encontrar o Javier pelas equipes de resgate.
Infelizmente, as chances de encontrá-lo com vida eram muito remotas e o pior se confirmou alguns dias depois.
Álbum de fotos:
Expedição ao Mercedario (6770 m) 2010 |
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