sexta-feira, 25 de março de 2016

Em busca do Mercedario: o cume, finalmente! (2010)

Texto por: Marcelo Delvaux

Relato da ascensão realizada em fevereiro de 2010.



Na temporada de 2010 resolvi voltar ao Cerro Mercedario, na Argentina, a quarta montanha mais alta dos Andes, com 6770 m de altitude, localizada ao norte do Aconcagua, na província de San Juan. Após a tentativa frustrada do ano anterior, quando fui obrigado a descer devido as nevascas e fortes ventos, resolvi adotar uma estratégia mais ousada e, por isso mesmo, mais arriscada: já conhecendo a instabilidade e imprevisibilidade do clima naquela região, a ideia seria subir o mais rápido possível, caso conseguisse uma janela de tempo bom, preferencialmente em estilo alpino, sem realização de porteios ou caminhadas de aclimatação.

Cheguei em Barreal em uma segunda-feira pouco depois do meio-dia. Olhando os picos das cordilheiras Ansilta e La Ramada, a impressão é que eles estavam com menos neve do que no ano anterior. Tal impressão se confirmou quando o Ramón, dono da pousada onde eu estava hospedado e que iria me levar de 4x4 até o refúgio da Laguna Blanca no dia seguinte, me disse que no último inverno havia nevado menos do que o normal. Após o almoço fui até o centro da vila consultar a previsão do tempo na internet e a mesma parecia promissora. Havia uma nevasca prevista para a sexta-feira, mas o final de semana prometia ter tempo bom. Preparei minha mochila visando otimizar ao máximo o peso, de modo a conseguir carregar tudo de uma única vez, sem ter que fazer porteios. Só iria partir para uma estratégia convencional de porteio e aclimatação caso não estivesse me sentindo bem o suficiente para subir direto. Para tomar esta decisão, iria monitorar meu nível de oxigênio e meus batimentos cardíacos e analisar meu apetite e as condições de minhas noites de sono.

Parti para a montanha na terça-feira de manhã. Por volta das 11:30 chegamos no refúgio da Laguna Blanca, situado a pouco mais de 3000 m. Combinei com o Ramón de me buscar ali na terça-feira seguinte. Meu objetivo neste primeiro dia era subir direto para Piedras Coloradas, a quase 3900 m, onde iria montar meu primeiro acampamento. O céu estava limpo e fazia calor, mas o vento soprava algumas vezes bem forte. Coloquei a mochila nas costas e iniciei a subida lentamente, procurando encontrar o ritmo adequado. Mesmo tendo economizado no peso, a carga que eu levava ainda era considerável, já que tinha provisões para 8 dias, além de todo equipamento de alta montanha. Este trecho inicial é tranquilo, correspondendo a uma trilha bem larga que sobe gradualmente em “zig-zag” a quebrada do rio formador da Laguna Blanca. Alguns atalhos unem as curvas do “zig-zag”, economizando uns bons metros de caminhada. Após 2 horas cheguei em Guanaquitos (3750 m), o primeiro acampamento da rota normal. Neste ponto, deve-se abandonar a trilha principal, que se dirige ao glaciar del Caballito, e seguir subindo à direita, acompanhando um outro curso de água.


Pouco acima de Guanaquitos aproveitei algumas pedras ao longo do riacho, que estava mais cheio do que no ano passado, para atravessá-lo. Após subir mais um pouco pela margem, cheguei no único local da trilha para Piedras Coloradas que oferece algum tipo de obstáculo: um trecho mais inclinado de pedras soltas ao lado do rio obriga o caminhante a subir pela encosta íngreme e desbarrancada à esquerda, para contornar as pedras e retornar ao rio mais adiante.

Cheguei em Piedras Coloradas às 16:00, com pouco mais de 4 horas de caminhada. Este é um local bastante agradável para se acampar, com água corrente em abundância e temperaturas não muito baixas à noite. Na verdade, estava relativamente quente para aquela altitude, o que explicava o grande volume de água no riacho. Mas isso não era garantia de tempo bom, o clima ali poderia mudar repentinamente. Além do mais, às vezes ventava bem forte e eu não me lembrava de ter enfrentado vento nas duas noites que havia passado neste acampamento no ano passado. Estava me sentindo incrivelmente bem, praticamente não sentia nenhum efeito da altitude. À noite meu oxigênio estava em 95% e os batimentos cardíacos abaixo de 60. Decidi, então, partir direto, no dia seguinte, para a Cuesta Blanca, uns 600 m acima.


A quarta-feira também amanheceu com tempo bom. O céu azul e o calor do sol davam mais ânimo à primeira subida forte que eu iria enfrentar nesta ascensão. Seria, porém, um dia curto, eu estimava fazer aquele trecho em umas 3 horas. Acabei gastando pouco mais de 2 horas, o que me deixou bastante otimista, confirmando que minhas condições físicas estavam excelentes. A trilha que parte de Piedras Coloradas se localiza do outro lado do riacho. Mas eu acho bem mais agradável subir pelo lado onde eu havia acampado: além do percurso ser menor, já que é uma subida mais direta, percorre-se um longo trecho cheio de pequenos cursos de água, que irão formar o riacho mais abaixo. Mais acima se chega a um local repleto de pedras em um aclive de cascalho bem fácil de caminhar, permitindo ganhar altura rapidamente. Uma guinada à esquerda conduz de volta à trilha, em um ponto onde aparecem alguns blocos de gelo na encosta. Surge, então, uma primeira subida mais íngreme e, após o reencontro com o riacho, o caminho segue durante algum tempo sua margem até a principal subida do dia: um longo “acarreo”, à esquerda. Um “acarreo” é um tipo de encosta formada por muitas pedras soltas e cascalho instável. Neste ponto é preciso estar atento aos totens de pedra para encontrar o “zig-zag” da trilha, porque, senão, é um martírio para subir.

Vencido aquele obstáculo, atravessei novamente o riacho mais acima e já pude vislumbrar o imenso anfiteatro que é a Cuesta Blanca, que tem este nome devido à neve de suas paredes. Na verdade, essa neve não passa de um grande campo de penitentes e, dependendo das condições da montanha, a subida para a parte superior da Cuesta Blanca implica na travessia deste típico obstáculo andino. Mas este ano a quantidade de penitentes era menor e, de longe, dava para observar a rota contornando o campo de penitentes, ao invés de atravessá-lo. Que boa notícia, pensei, eu odeio penitentes!


Logo no início da Cuesta Blanca, que é considerada o acampamento base do Mercedario, eu avistei uma barraca alaranjada e seus dois ocupantes, que logo vieram ao meu encontro. Eram dois poloneses, o Jerzy Zaborny e sua companheira Dorota, ou George e Dorothy, como eles traduziam seus nomes para o inglês. O Jerzy era um montanhista experiente e estava vindo do Aconcagua, estando, portanto, bastante aclimatado. Estava subindo a montanha lentamente para que a Dorota também pudesse se aclimatar. Eram gente finíssima e ficamos ali conversando, despreocupadamente. Eles me disseram que os últimos dias foram de muito vento, confirmando o que eu havia observado em Piedras Coloradas. Também falaram que havia uma grande expedição argentina mais acima, que provavelmente havia atacado o cume no dia anterior. Aliás, os argentinos e os poloneses iriam protagonizar um dos dramas vivenciados no Mercedario nesta temporada. Mas coisa pior ainda estava para acontecer, como eu descobriria depois.

Despedi-me dos poloneses, que pretendiam partir para um acampamento localizado na parte superior da Cuesta Blanca no dia seguinte, e continuei subindo, já que eu queria dormir no ponto mais alto do acampamento base. Mais adiante divisei algumas pessoas descendo pela encosta, margeando os penitentes. Provavelmente eram os argentinos. Uma das pessoas do grupo estava descendo bem rápido e acabou chegando antes de mim no local onde eu pretendia acampar. Aproximei-me lentamente e me encontrei com esta pessoa, uma simpática montanhista de San Juan. Ela me disse que seu grupo era formado por treze pessoas e que faziam parte de uma expedição organizada pelo governo da província. Estavam na montanha há mais de dez dias, mas haviam desistido, devido aos fortes ventos. Seis companheiros já tinham desistido antes e, agora, o restante do grupo estava descendo. Aos poucos, os demais integrantes foram chegando e contando sua experiência nos últimos dias. O vento era o grande vilão daquelas paragens e eu já estava convencido que teria que enfrentá-lo, caso quisesse tentar o cume.


Pelo menos tive uma boa notícia: havia água corrente na Cuesta Blanca e não seria necessário derreter neve! Fui até os penitentes com um dos argentinos e ele me mostrou um ponto onde havia uma fissura no gelo e estava correndo água. Ele era o mais velho do grupo e me disse, ironicamente, que por ser o mais velho os outros o mandavam buscar água. Revelou-me, então, que tinha um filho que havia morrido na face sul do Mercedario. Seu filho trabalhava como guia de montanha e resolveu subir pela difícil rota da face sul e descer pela rota normal. Chegando próximo ao cume, desequilibrou-se com o peso da mochila e caiu para trás, uma grande fatalidade. Mas ele me contou isto com grande serenidade, sem demonstrar nenhuma revolta ou rancor em relação à montanha. Até brincou, dizendo que seu outro filho, que também é guia, é muito mais louco e continua vivo. Isto me comoveu profundamente, me fazendo perceber como algumas pessoas conseguem superar de forma tão positiva uma perda como esta: lá estava ele, subindo pela segunda vez a montanha que havia tirado a vida de seu filho.

O pessoal gentilmente me ofereceu comida, dizendo que haviam deixado uma boa quantidade de suprimentos em dois acampamentos mais acima. Eles tinham uma carga considerável para levar embora da montanha, inclusive as coisas deixadas para trás pelos seus companheiros que haviam ido embora primeiro, e parte desta carga acabou ficando ali na base, aguardando as mulas que iriam buscá-la alguns dias depois. E foi nesta “operação limpeza” que cometeram um grande equívoco, responsável pelo drama que eu comentei mais acima: eles acabaram descendo com os equipamentos que os poloneses haviam porteado para a parte alta da Cuesta Blanca. Depois deste dia eu não vi mais os poloneses na montanha e achei estranho. Um outro argentino que eu encontraria dois dias depois, e que também estava subindo em solitário, me disse que os poloneses desceram porque não tinham mais gás. Mais estranho ainda, pois era pouco provável que o Jerzy cometesse um erro destes, calcular mal a quantidade de gás. Só quando voltei a Barreal e reencontrei os poloneses é que fiquei sabendo o que havia acontecido. Eles desceram por que ficaram sem suas roupas e equipamentos de alta montanha. Como eles não falavam nada de espanhol, eu os ajudei a localizar o pessoal em San Juan e o equívoco se resolveu: suas coisas estavam lá na cidade. Mas a montanha estava perdida para eles.

Após despedir-me, montei minha barraca e fui preparar um lanche com os queijos e salames que eles haviam deixado para mim, um luxo naquela altitude. Pouco depois, tive que preparar uma amarração para minha barraca nas pedras ao lado, tamanha era a força do vento. É, pensei, mais uma vez terei o vento como companheiro de montanha. Aliás, este tem sido meu “companheiro acidental” nos últimos anos e acho que já estou me acostumando com seu mau humor. Consolei-me olhando para os penitentes ao longe: pelo menos desta vez estou livre de vocês!



À noite aconteceu um fenômeno estranhíssimo. Estava na barraca e comecei a ouvir um barulho de água. Inicialmente, pensei que poderia ser o vento. Que nada, ao sair para ir ao “banheiro”, tinha um verdadeiro riacho correndo no declive que fica abaixo do local onde as barracas do acampamento base normalmente são armadas. Não entendi porque a água começou a descer neste horário, o mais lógico seria que isso acontecesse no meio da tarde, com o derretimento da neve proporcionado pelo sol forte. Mas aquele barulhinho de água veio em uma hora boa, na hora de dormir... E foi mais uma excelente noite de sono! Meu batimento ainda estava em torno de 60 e meu oxigênio continuava em alta, a 92%. Sinal verde para subir, no dia seguinte, diretamente para o próximo acampamento, Pirca de Indios, a cerca de 5200 m.

A manhã de quinta-feira apresentou-se, mais uma vez, ensolarada e com céu azul. Mas o vento parecia mais constante e me obrigava a caminhar com uma jaqueta. Pela frente eu tinha a subida mais difícil desta fase de aproximação, antes do ataque ao cume: a parede do anfiteatro da Cuesta Blanca, em uma trilha bastante íngreme e inclinada, com muitas pedras soltas. Gastei umas 4 horas até Pirca de Índios, onde eu pretendia montar meu último acampamento. Minha ideia era atacar o cume dali, enfrentado um desnível de mais de 1500 m. Uma das dificuldades da rota normal do Mercedario, que a torna mais exigente do que a do Aconcagua, é justamente a localização dos acampamentos avançados. Acima de Pirca de Indios existem duas possibilidades: La Hoyada (5800 m) e El Diente (6100 m). O problema é que estes locais são bastante expostos aos fortes ventos, principalmente La Hoyada, que se localiza na entrada do glaciar homônimo e é constantemente varrida pelo “viento blanco”. Ou o montanhista se expõe ao vento para encurtar o ataque ao cume, ou parte de Pirca de Indios (5200 m). Esta última opção, além do imenso desnível, também oferece como obstáculo uma grande distância a ser percorrida, bem maior do que aquela que separa o Nido de Condores do cume do Aconcagua.



Pirca de Indios tem este nome devido aos restos arqueológicos encontrados ali: pilhas de pedras remanescentes de antigos acampamentos incaicos! No Mercedario foram encontrados vestígios da presença dos incas até uma altitude de 6100 m. Eles foram os verdadeiros pioneiros do montanhismo nos Andes, sendo responsáveis pela “primeira ascensão” de muitos cumes só escalados, posteriormente, no século XX.

Antes de dormir conferi novamente minhas condições: oxigênio a 85% e batimento inferior a 70. Depois fiquei sabendo que nesta noite houve um tremor de terra na montanha. Os poloneses e o argentino que estavam mais abaixo sentiram o tremor. Eu não percebi nada, talvez já estivesse dormindo. Seria um prenúncio do forte terremoto que sacudiria o Chile alguns dias depois, já que ali estávamos bem próximos da fronteira? Isso talvez explicasse o estranho “riacho noturno” da noite anterior. Provavelmente, também deve ter acontecido um pequeno tremor naquela noite, liberando a água que se precipitou montanha abaixo.

Na sexta-feira de manhã o vento estava forte e algumas nuvens surgiram no céu. Lembrei-me da previsão de nevasca para aquele dia. Antes do meio-dia o vento melhorou e eu resolvi subir em direção a La Hoyada, para analisar as condições do trecho que eu iria percorrer de noite, durante o ataque ao cume. Novamente me sentia muito bem, tão bem que não resisti e subi em ritmo forte, gastando uma hora e meia para superar os 600 m de desnível até La Hoyada. Em condições normais eu teria subido tranquilamente, economizando energia, mas eu parecia uma pilha carregada e estava bastante motivado e feliz por estar de volta ali. Será que a montanha me daria uma trégua desta vez? Quando comecei a descer de La Hoyada uma massa considerável de nuvens começou a se acumular nas partes altas da montanha. Meu ânimo passou a alternar momentos de otimismo e pessimismo. Se o tempo fechasse de vez e começasse a nevar muito, o cenário do ano passado poderia se repetir.



Quando estava chegando de volta a Pirca de Índio vi uma pessoa subindo com uma mochila cargueira. Pensei que era o Jerzy e fui ao seu encontro, mas era um argentino chamado Jorge, outra figura “gente fina”. Após instalar sua pequena barraca de vivac, ele foi me fazer uma visita e me contou que, na semana anterior, ele havia feito uma tentativa de subir o Mercedario, mas foi forçado a descer, pois seu parceiro de escalada havia passado mal e sua barraca foi destroçada pelo vento em La Hoyada. O Jorge também era bastante experiente, tendo escalado o Daulaghiri, no Himalaia, junto com uma expedição catalã em 2003. Falei sobre minha intenção de atacar o cume dali e ele me alertou sobre a grande distância que eu teria que enfrentar. Ele preferia subir até El Diente e faria isto em um ou dois dias. Enquanto conversávamos, o vento aumentou e nos refugiamos em minha barraca. O Jorge me disse, então, que a previsão de tempo bom seria para o domingo. Como me sentia muito bem, eu estava cogitando atacar o cume nesta madrugada. Temia que a previsão de tempo bom pudesse não se concretizar e eu perdesse a oportunidade. Preparei todas as coisas para o ataque e fui dormir mais cedo. Deixaria para decidir se eu partiria ou não na própria madrugada de sábado, quando acordasse, observando as condições do vento. Meu nível de oxigênio havia subido novamente para 90% e os batimentos cardíacos continuavam baixos, inferiores a 70.

Acordei à meia-noite, quer dizer, fui acordado pelo meu companheiro, o vento. Praticamente não consegui dormir novamente, com as seguidas rajadas que sacudiam a barraca. Hoje não vai dar mais, pensei, e desliguei o despertador. Só voltei a dormir profundamente depois das 03:00, pouco antes do horário que eu havia planejado levantar. Às 05:00 da manhã acordei novamente e me deu vontade de partir. O vento continuava, não havia sinal de uma melhora significativa. Mas minha intuição dizia: “apúrate”. É interessante como, em grandes altitudes, nós temos às vezes estes vislumbres intuitivos, pelo menos comigo é assim. Acendi a lanterna, vesti minha roupa, comi meu desjejum e saí para aquela imensidão estrelada que é a noite na montanha. Sabia que não podia errar: se eu queimasse este ataque, seria pouco provável que eu pudesse recuperar minhas forças e teria que descer. Afinal de contas, iria buscar o cume da quarta montanha mais alta dos Andes com apenas quatro dias de subida!

Comecei a subir pela parede lateral do anfiteatro glacial onde Pirca de Indios está localizado, buscando os pequenos totens que marcam o caminho. O vento até que estava suportável, mas temia o que iria acontecer quando o dia amanhecesse. Não me animava nem um pouco a ideia de me deparar com o verdadeiro “furacão” do ano passado. Após o local conhecido como Pirca de Indios Superior avistei, ao longe e bem abaixo, as luzes de uma pequena vila, provavelmente Barreal. Começou a amanhecer e o sol surgiu imponente, inundando de luz montanhas e vales. E o vento começou a aumentar. Novamente, gastei cerca de uma hora e meia até La Hoyada. Chegando lá percebi um cenário totalmente diferente do dia anterior: havia nevado, conforme a previsão! E o “viento blanco” varria, impiedoso, aquele ponto exposto da montanha.



Coloquei meu goggle, uma máscara de esqui que oferece mais proteção em caso de tempestades e ventos fortes, e parti em direção ao “viento blanco”. Foi a primeira grande batalha do dia, parecia que eu estava no meio de uma forte nevasca. Só ficaria livre desta situação depois que eu subi pela rota que leva até El Diente. O Jorge havia me dito que havia um “zig-zag” bem marcado neste ponto, mas com aquele vento levantando neve e gelo, não dava para enxergar nada, apenas era possível distinguir a trilha de descida, uma longa e inclinada reta que levava diretamente até La Hoyada. Não tive alternativa, tive que subir por ali. Forte, muito forte, é o mínimo que eu posso dizer para descrever esta subida que, na verdade, não deveria jamais ser utilizada como subida. Somente consegui encontrar o “zig-zag” bem acima de La Hoyada. Neste ponto pude respirar um pouco mais aliviado, já que a rota se tornou mais fácil e o “viento blanco” havia ficado para trás.

A longa subida até El Diente foi vencida sem maiores surpresas. Devo ter gastado umas duas horas e meia neste trecho. Uma hora mais e cheguei no que considero o ponto crítico da rota normal do Mercedario: após mais de cinco horas de subida, avista-se o falso cume ainda muito longe. A rota, agora, segue pela parte superior do glaciar La Hoyada, em um trecho inclinado repleto de pedras soltas. Na medida em que se sobe, o terreno fica pior e mais instável. É uma longa travessia paralela ao glaciar que lembra, vagamente, o Gran Acarreo do Aconcagua. Qualquer deslize pode significar rolar montanha abaixo. Imagino que muitos desistem ali. Em alguns pontos, devido à forte inclinação, a neve se acumula e, ao se compactar, vai se transformando em placas de neve dura ou gelo que devem ser cruzadas em diagonal. Em uma dessas travessias a neve estava tão dura que não dava para passar fazendo degraus horizontais chutando com a ponta da bota, onde seria possível pisar com uma certa estabilidade. O jeito era calçar os crampons. O problema era que isto significava parar no meio do vento, ou seja, ficar exposto ao frio. Mas não havia alternativa. Coloquei rapidamente os crampons, atravessei a neve dura, e continuei sem descalçá-los, pois não queria parar novamente e havia outros trechos com neve mais adiante.

Depois de algumas subidas fortes, o falso cume ficou mais próximo e a rota desapareceu, confirmando minha tese que a desistência neste trecho deve ser constante, deixando poucas marcas no caminho. Eu sabia que teria que seguir em direção ao falso cume, sem subir até o topo, para então buscar o cume verdadeiro, que deste ponto ainda não era visível. Havia duas alternativas: continuar subindo à esquerda em direção ao falso cume ou subir mais à direita em uma linha mais suave. Olhei para frente e vi o glaciar subindo abruptamente, em direção ao ponto onde eu imaginava que o cume verdadeiro se localizava. Então me decidi: vou subir pelo glaciar, fazendo uma variante da rota normal.

Para chegar ao glaciar também havia duas opções: como eu estava na encosta rochosa acima do mesmo, bastaria descer à direita, mas eu não queria perder altitude. A outra opção era seguir adiante até o ponto em que a encosta se encontrava com o glaciar. Foi o que fiz e esta foi a parte mais sofrida de todas. Em vários pontos havia formações rochosas atravessando o caminho, formando grandes desníveis em direção ao glaciar. Era por isso, certamente, que a rota normal seguia em direção ao falso cume: era uma subida mais íngreme em um cascalho instável, mas sem grandes riscos. Onde eu estava havia mais perigo de uma queda, que poderia ser fatal. Além do mais, eu estava com os crampons, que resvalavam a todo momento nas rochas. Mesmo assim não me animava em parar no vento para tirá-los, já que no glaciar teria que colocá-los de novo. Foi, sem dúvida, o trecho em que mais me cansei.

Depois de muito esforço cheguei no glaciar. Para minha alegria, a neve estava bem dura, perfeita para se ganhar altitude rapidamente. Eu não tinha nem ideia de como era aquele glaciar. Olhando para cima, uma grande greta me espreitava como uma imensa boca, aberta e ameaçadora. Comecei a subir em direção ao lado direito da greta. Minha intenção era atravessar a linha da greta em um sentido perpendicular, para evitar andar na borda de uma possível parte da greta encoberta pela neve. Mas isto significava subir em linha reta e a inclinação começou a aumentar cada vez mais. Neste momento não sentia mais o vento, nem o cansaço das últimas duas horas. Novamente me senti revigorado e com uma grande energia, física e mental, para superar aquela situação. Eu era pura concentração, não sei descrever o que me passou pela mente a partir de então...

Quando já estava bem acima da greta, tomei uma diagonal para a esquerda para tentar suavizar a inclinação. O interessante quando se sobe por um glaciar com uma forte inclinação é que não dá para ver nada quando se olha para cima, apenas uma borda arredondada, é como caminhar sobre a superfície de uma bola. Quando a diagonal para a esquerda se tornou muito íngreme, inverti a direção e tomei outra diagonal para a direita. Depois de um tempo, me virei para cima e, para minha surpresa, a borda arredondada havia se transformado em uma linha reta, como se eu fosse chegar na borda de um precipício. Estaria chegando no cume? Olhei para os lados e percebi que estava mais alto que tudo ao meu redor, inclusive do falso cume, lá longe, à minha esquerda. Mais uns passos e me dei conta que não havia chegado no cume, mas em uma crista no alto do glaciar, que se precipitava diretamente em direção à face sul da montanha. Tenho a impressão que a rota da face sul termina neste mesmo lugar. Olhando para a esquerda vi o cume verdadeiro, uns trinta metros, no máximo, acima daquele ponto. Caminhei extasiado, e exausto, por aquela crista fantástica. Olhei para o sul: lá estava, imponente, o Aconcagua. Aos meus pés descortinava-se a visão dos outros gigantes da cordilheira La Ramada. Ainda não estava no cume, mas sabia que havia conseguido!




Cheguei ao lado do cume, tirei minha mochila e comecei a ensaiar algumas fotos. O vento deu uma diminuída, o que me permitiu tirar minhas luvas “mitten”. Incrível como consegui ficar uns 20 minutos ao lado do cume, sem nenhuma ansiedade em chegar até lá, tirando minhas fotos tranquilamente e apreciando a vista. Em seguida, subi os metros finais e pude curtir aquele incrível visual de 360 graus que o cume oferece. Foram, aproximadamente, oito horas e meia até lá.




Devo ter ficado mais de uma hora no cume. Como nos Andes argentinos, nesta época, escurece depois das 21:00, eu tinha bastante tempo para a descida. Comecei a descer pouco depois das 15:30 por uns “acarreos” que se tornaram terríveis após o falso cume. Até chegar na trilha da rota normal tive que enfrentar muita pedra solta em lugares que davam a impressão que iriam desmoronar, caso eu fizesse algum movimento brusco.

Antes de chegar em El Diente minha água acabou e a sede começou a me incomodar. Para descer para La Hoyada sai da rota e peguei um caminho mais direto que, em poucos metros, se transformou em mais uma descida perigosa e instável. A sede se transformou, então, em algo desesperadamente insuportável. Eu via lá embaixo todo aquele gelo do glaciar e não via a hora de chegar em minha barraca e preparar um suco. Mas a progressão era lenta, apesar de estar descendo, pois tinha que escolher bem meus passos naquele trecho íngreme.

Chegando próximo a La Hoyada não aguentei: desviei meu caminho para o glaciar. Já era final de tarde e, com o calor do sol, o gelo estava úmido e brilhante, uma tentação para quem está sedento! Por baixo do gelo era possível escutar a água correndo. Bati violentamente com meus pés nas placas de gelo, na esperança de encontrar água, mas a mesma estava em uma profundidade inalcançável por este método. O jeito era quebrar o gelo em pequenos pedaços e colocá-los na boca para derretê-los. Fiquei uns vinte minutos sentado ali, descansando e tentando me hidratar um pouco. Até que deu para enganar um pouco a sede.

Após sair de La Hoyada e reencontrar a trilha, pude finalmente relaxar, já que agora o caminho era bem mais fácil, e comecei a última grande descida até Pirca de Indios. Desci bem devagar, curtindo o visual. Mas também não dava para ir mais rápido, estava realmente bem cansado após mais de 12 horas de esforço contínuo, sem contar a parada no cume, e a sede voltou a me perturbar. Finalmente, cheguei a Pirca de Indios e o Jorge, ao ouvir meus passos, saiu de sua barraca para me cumprimentar e me entregar um litro de suco que ele havia feito para mim! Não poderia esperar nada melhor do que isso... Conversamos rapidamente sobre o cume e eu fui para minha barraca. Ainda tive que providenciar minha refeição antes de poder descansar.

No domingo me dei ao luxo de dormir até depois das 09:00. O vento não havia melhorado e, para piorar, a noite havia sido extremamente fria. Ainda bem que eu resolvi atacar o cume ontem, pensei, pois hoje teria o mesmo vento com uma temperatura mais baixa ainda. Vi que o Jorge estava preparando suas coisas para subir para El Diente. Fui até ele me despedir e desejar-lhe boa sorte. Às 11:00 da manhã já estava pronto para descer a montanha. Com um pouco de sorte poderia chegar em Barreal naquele mesmo dia.

Desci tranquilamente, curtindo a montanha. Esta é uma região dos Andes que eu gosto bastante e é incrível como, sem nenhuma razão aparente, nós nos sentimos tão bem em determinados lugares! Fiz duas paradas nos locais onde havia acampado e, por volta das 16:00, já estava no refúgio da Laguna Blanca. O desafio, agora, era conseguir um transporte para Barreal. A única alternativa era torcer para que alguma caminhonete da empresa que tem uma mina naquela região passasse pela estrada ao lado do refúgio. Meia hora depois vi uma caminhonete branca e corri para a estrada. Infelizmente, vinha no sentido contrário e ia em direção à mina. Mas o motorista me disse que ia se comunicar por rádio para o escritório da empresa, pedindo que eles chamassem o Ramón lá em Barreal.

Esperei mais umas três horas e nada. Já estava convencido que teria que passar a noite no refúgio, quando vi outra caminhonete de cor escura vindo da Laguna Blanca. Opa, as caminhonetes da mineradora são todas brancas, quem sabe não é o Ramón, falei para mim mesmo. Mas não queria comemorar antes da hora e fiquei sentando em frente ao refúgio vendo a caminhonete passar. Se for o Ramón ele vai vir até aqui, pensei. A estrada sobe por trás do refúgio e eu me virei para esta subida: se a caminhonete passasse por ali, minhas esperanças teriam sido em vão. Mas a caminhonete sumiu, não veio até o refúgio, nem fez a volta atrás do mesmo! Levantei-me e fui ver o que estava acontecendo. A caminhonete estava manobrando para, aparentemente, retornar em direção a Barreal. Corri, pensando que o motorista estava voltando. Mas a caminhonete parou e saíram três pessoas de dentro. Uma delas pulou na caçamba e começou a sacar umas mochilas cargueiras. Caminhei em sua direção e esta pessoa levantou a cabeça e exclamou assustado: “¿Marce, qué estás haciendo aquí?”. Era o Ramón. Não havia recebido a chamada de rádio prometida pelo motorista da mineradora, mas estava trazendo uma dupla de montanhistas de Buenos Aires para escalar o Mercedario.

Que sorte, comemorei, pensando que minha relação com aquela montanha terminava ali, pelo menos desta vez. Mal sabia que, naquele momento, iniciava-se o grande drama desta temporada no Mercedario. Troquei algumas palavras com os montanhistas de Buenos Aires, que planejavam ficar uma semana e meia na montanha. Eram um homem e uma mulher. Na minha empolgação, não guardei seus nomes. Alguns dias após meu retorno tive um tremendo susto, ao me deparar com a seguinte notícia: “Montanhista argentino continua desaparecido no Mercedario”. Meu sangue gelou, na hora pensei que era o Jorge. Abri a notícia e, preocupado com o Jorge, li o nome do andinista desaparecido: Javier Paduszck. Ao ler o restante do texto, que mencionava uma dupla de Buenos Aires, a “ficha caiu”: eram os montanhistas que eu havia encontrado no refúgio. Isto se confirmou quando vi a foto do Javier. Fiquei bastante triste e abalado e continuei, nos dias seguintes, ainda “ligado” à montanha, buscando na Internet alguma novidade sobre as tentativas de se encontrar o Javier pelas equipes de resgate. Infelizmente, as chances de encontrá-lo com vida eram muito remotas e o pior se confirmou alguns dias depois.

Álbum de fotos:
Expedição ao Mercedario (6770 m) 2010

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