sexta-feira, 25 de março de 2016

Expedição ao Equador – 3ª parte (2011)


Texto por: Marcelo Delvaux

Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.

Nesta do Equador foram escaladas quatro montanhas em sete dias, todas em solitário: Iliniza Norte (5126 m, 18/01/2011), El Corazón (4791 m, 19/01/2011), Cotopaxi (5897 m, 21/01/2011) e o famigerado Chimborazo (6310 m, 25/01/2011).

Chimborazo: "En el castillo del monstruo"


No domingo liguei para o Rodrigo Donoso, experiente montanhista equatoriano que, até um ano atrás, era o responsável pelos refúgios do Chimborazo. Eu conheci Don Rodrigo há dez anos, quando escalei o Chimborazo pela primeira vez. Ele também possui uma interessante pousada instalada na estação ferroviária desativada de Urbina, a uns 25 km de Riobamba, a Posada La Estación. Combinei com ele o transporte para o refúgio para a segunda-feira à tarde e reservei um quarto na pousada para o dia seguinte. Cheguei em Riobamba umas 13:00, mandei um frangão assado para o estômago e parti para o refúgio, em seguida, com um funcionário do Rodrigo.


No Chimborazo o carro chega até o primeiro refúgio, conhecido como Refúgio Carrel, a 4800 m. Duzentos metros mais acima está o Refúgio Whymper. Os refúgios têm esses nomes em homenagem aos primeiros escaladores que alcançaram o cume deste gigante andino. O clima estava parecido com o do Cotopaxi: entrando no Parque Nacional onde está o Chimborazo não era possível se avistar nada. Se eu já não conhecesse aquelas paragens não acreditaria que, na minha frente, estava um respeitável "seis mil" me aguardando. Confesso que preferi assim, o Chimborazo tem uma imponência intimidadora e, até mesmo, assustadora. É uma montanha que eu respeito muito. Na verdade, eu respeito muito qualquer montanha, mas esta tem alguma coisa de especial. Não sei se são as inúmeras "lápides" colocadas em volta dos refúgios, na verdade placas em memória aos diversos montanhistas que perderam a vida ali, que trazem esta estranha percepção. Só sei que se tem a sensação de proximidade de algum monstro. Notei que algumas destas placas tinham datas posteriores à última vez que eu estive lá...


Esta seria minha terceira tentativa no Chimborazo. Nas outras duas vezes eu subi com guias equatorianos e as condições estavam impraticáveis, muito gelo instável e quebradiço, impedindo o avanço acima do El Castillo. Desta vez me propus a escalar em solitário, assumindo os riscos que já conhecia bem. É impressionante o respeito que os montanhistas equatorianos também têm por essa montanha. Quando estava no Cotopaxi ouvi os guias usando a expressão "serious climbing" para designar sua ascensão. Também me lembro do sr. Bladimir Gallo falando do Chimborazo como uma "montanha complexa". Refletindo sobre sua rota normal, que geralmente é graduada como PD/PD+ me dei conta de como  a escala alpina francesa, utilizada isoladamente, não é suficiente para caracterizar a dificuldade de uma rota de alta montanha. Talvez seja necessário agregar outros fatores, do mesmo modo que a escalada em paredes incorporou, além do grau técnico da via (crux e grau geral), elementos como o grau de exposição, duração e grau dos lances em artificial.

No caso do Chimborazo, a rota normal pode ser dividida em duas partes. A primeira corresponde ao setor abaixo do El Castillo e a segunda parte a aresta acima do El Castillo e o longo glaciar que dá acesso aos cumes Veintimilla e Whymper (cume principal).

A primeira parte da rota possui algumas variantes, utilizadas conforme as condições da montanha permitem. Atualmente, do mesmo modo que a seis anos atrás, inicia-se a ascensão por uma trilha à esquerda do refúgio que segue a porção esquerda do glaciar Thielman. Esta trilha está relativamente bem marcada por totens de pedra e sobe em uma inclinação cada vez mais acentuada, até atingir os primeiros trechos de neve e gelo, cujo nível inicial também varia, dependendo das condições do glaciar. A principal característica de todo este setor é a composição mista de rocha, gelo e neve. Pode haver de tudo e é preciso dominar um conjunto variado de técnicas para pode passar com segurança, principalmente se o gelo predominar. Também é importante estar acostumado a escalar trechos mistos com crampons, pois não dá para descalçá-los toda vez que surgem rochas pela frente, para calçá-los novamente em seguida.


A rota segue, mais ou menos, na parte central do setor formado pela parede esquerda daquela face da montanha, onde se encontra o El Castillo na parte superior, e o glaciar Thielman, à direita. Quando se aproxima de alguns seracs, é preciso fazer uma volta brusca para a esquerda na base destes blocos de gelo, em direção ao El Castillo, buscando atingir a aresta NE/E que conduz ao imenso glaciar do cume Veintimilla. O El Castillo é uma grande formação de rochas instáveis e empilhadas no início da aresta NE/E, lembrando o formato de um castelo. Existe uma grande ocorrência de quedas de rochas, alguma imensas, principalmente após o amanhecer. A primeira vez que fui ao Chimborazo a rota era mais direta e saía do refúgio bem à esquerda, buscando chegar mais rápido à parede do El Castillo. De lá subia-se ao lado da parede, sendo necessária uma pequena escalada técnica de rocha e gelo. Apesar da vantagem de se ganhar altitude rapidamente e encurtar a aproximação com a aresta, esta variante é pouco utilizada por estar na "linha de tiro" do gigante, que cospe seus imensos projéteis rochosos bem ali. Se existe algum monstro no Chimborazo, certamente o El Castillo é a sua morada.


Eu diria que esta parte inicial é bem complexa, não pelo grau isolado dos lances necessários para galgá-la, mas pelo "conjunto da obra" e pelos perigos envolvidos. Em diversos pontos uma queda é fatal, ou de consequências bem desagradáveis, além do risco de se cair alguma "coisinha" em sua cabeça. Nenhum sistema de graduação consegue refletir esta complexidade, havendo o risco de se colocar, em uma mesma categoria, montanhas de níveis de risco bem distintos.

Quando se chega na aresta a escalada muda completamente, sobretudo ao se atingir o glaciar. A principal dificuldade da segunda parte da rota é a inclinação constante de uns 45 graus até o cume Veintimilla, diferentemente do Cotopaxi, onde os inúmeros zig-zags suavizam a pendente. Outros riscos se escondem no Chimborazo. Pode haver muito gelo nesta encosta, aumentando não somente a dificuldade técnica, mas tornando fatal qualquer queda devido à quase impossibilidade de se detê-la nesta pendente acentuada. Também existem riscos reais de avalanches com o acúmulo de neve nas partes superiores do glaciar.

Eu devo ter chegado ao refúgio Carrel pouco depois das 16:00. Como minha intenção era dormir mais alto, calcei as botas duplas e parti em seguida para o Refúgio Whymper. Normalmente, pela sua maior dificuldade, o Chimborazo é bem menos frequentado do que o Cotopaxi e, nesta noite, seriam 2 cordadas lideradas por guias equatorianos, uma formada por tchecos e canadenses e a outra por um guia de Quito com um gringo cuja nacionalidade não fiquei conhecendo, além de minha tentativa solo, evidentemente. Havia também um suíço com seu guia no Refúgio Carrel que pretendia subir a partir deste refúgio, mas não os vi na montanha. Creio que avistei suas luzes abaixo de mim, mas devem ter desistido antes do El Castillo.

Cheguei no refúgio Whymper, deixei tudo preparado para a empreitada noturna e fui fazer os procedimentos tradicionais que antecedem um ataque ao cume: hidratar, comer e relaxar. Conversei um pouco com os tchecos sob os olhares desconfiados de seu guia equatoriano. Eles pretendiam sair às 23:00, bem antes de mim. Eu optei por acordar às 23:45 e iniciar a ascensão à meia-noite e meia. Fui dormir pouco depois das 18:00 e o tempo continuava fechado. Estava confiando nos prognósticos de tempo bom para a madrugada e fui dormir tranquilo.

Acordei no horário programado, fiz meus últimos preparativos, comi um pouco e saí 00:30, pontualmente. O céu estava estrelado e não havia vento, bom sinal! Avistei luzes bem acima do refúgio, provavelmente da cordada dos tchecos e canadenses. O guia de Quito saiu com seu cliente alguns minutos antes de mim, mas em uns 15 ou 20 minutos eu já os havia ultrapassado. Estava muito concentrado e me sentia bastante preparado, física, técnica e psicologicamente. Estes níveis de concentração são uma das coisas mais incríveis, e indescritíveis, do montanhismo. Quando consigo atingir este "estado de espírito" me sinto muito bem, uma espécie de força mental que aumenta os níveis de percepção e, de certo modo, de intuição, fazendo com que eu fique bem alerta a tudo.

Fui seguindo os totens de pedra e, em pouco tempo, já havia bastante neve na trilha, apesar de não ter chegado, ainda, ao glaciar. Em menos de uma hora alcancei uma rampa mais inclinada, que reconheci, pela experiência de 6 anos atrás, como sendo o acesso lateral do glaciar Thielman. Naquela ocasião havia somente gelo neste trecho e tivemos que desistir logo adiante. Agora as condições eram boas, com uma neve bem firme e consistente. Hora de colocar os crampons...

A rota também estava bem marcada, até porque havia uma cordada na minha frente. Subi seguindo aqueles indícios, que se dirigiam para o lado direito da rampa. Eu sabia que, mais acima, deveria fazer um contorno acentuado para a esquerda, só não tinha certeza sobre a altitude em que a rota faz este desvio em direção ao El Castillo. Por isso, fui subindo, sempre acompanhando as marcas na neve. Até que me dei conta que já estava quase chegando aos seracs que eu deveria contornar pela esquerda. A intuição me dizia que estava errado e havia três opções: escalar os seracs, contorná-los pela direita ou voltar. Como a volta significava descer e perder altitude, optei pelo que, aparentemente, me parecia mais fácil, um desvio pela direita. Mas o terreno foi ficando cada vez mais difícil e, quando percebi, estava em cima de uma fina camada de terra com um gelo duríssimo embaixo, no qual os crampons não penetravam, em uma inclinação de uns 45 graus. Perigoso, muito perigoso! Fui cramponando delicadamente e desci em diagonal para sair dali e raciocinar um pouco.

As marcas na rota subiam até perto de onde eu estava. Mais acima o que havia eram sinais de quedas de rocha. Provavelmente alguém havia subido até ali e retornado, o mais óbvio era descer e buscar uma saída pela esquerda, mais abaixo, em direção ao El Castillo. Nisso vi as luzes da cordada do guia de Quito. Estavam longe, por isso desci mais um pouco e esperei por eles. Quando estavam mais próximos perguntei ao guia se a rota era por ali e ele disse que sim, que tínhamos que subir até os seracs. Subi pela segunda vez aquele trecho, mas não estava disposto a buscar novamente um caminho pela direita. Comentei com o guia as péssimas condições da parte direita dos seracs e ele concordou, dizendo que teríamos que encontrar um acesso por sobre os seracs para, então, depois de escalar este obstáculo de gelo, virarmos à esquerda para subirmos em direção ao El Castillo. Encontramos um serac mais baixo e o guia me pediu que eu o testasse. Tirei meu piolet técnico da mochila e lá fui eu, solando aquele pedaço de gelo. Havia uma fina camada de neve no serac que me permitia, com um equilíbrio bastante delicado, cramponar frontalmente e tracionar os piolets sem penetrar o gelo. Até que a camada de neve acabou e constatei que o gelo era duríssimo. Teria uns 3 ou 4 metros a vencer, ainda, sem nenhum tipo de proteção ou segurança, já que não estava encordado. Até que o guia me chamou e disse que era melhor não subir por ali com seu cliente, que parecia pouco disposto a isso.

Então me decidi a fazer o que já havia pensado quando desci dali pela primeira vez: buscar um caminho pela esquerda dos seracs. Desci da mesma forma que subi, delicadamente, como se estivesse pisando em ovos. Cheguei na base dos seracs e fiz uma diagonal para baixo, direta, buscando a parte esquerda dos blocos de gelo. Fiz isso o mais rápido que pude, pois estava perdendo muito tempo. Em poucos minutos reencontrei uma neve de qualidade e, para minha alegria, sinais evidentes da rota, bem na esquerda dos seracs. Olhei para o relógio e fiquei preocupado: já eram 03:00, havia perdido mais de uma hora neste trecho! Além do tempo desperdiçado, havia gasto uma energia preciosa subindo e descendo duas vezes um desnível de mais de 50 m. E teria que recuperar estes metros pela terceira vez, mas agora na rota correta. Gritei para o guia alertando-o do caminho a seguir e toquei para cima, buscando minimizar um pouco o prejuízo.

Em pouco tempo me aproximei do El Castillo e da aresta. Quanto mais próximo da aresta, mais inclinado ficava o terreno. A neve sumiu e tive que subir de crampons por cima de uma mistura duríssima de terra e pedras congeladas. Até que subir não era tão difícil, este trecho iria se mostrar bastante crítico na descida. Ao chegar na aresta senti um certo alívio, pois a rota ali parecia bem tranquila e havia bastante neve. Segui a aresta que, em alguns pedaços, era bastante estreita, desviando-me de alguns obstáculos rochosos. Até esbocei um sorriso, lembrando-me da "maldita aresta" do El Corazón. Essa aqui está moleza, perto daquela coisa instável e traiçoeira.

Mas tive que engolir meu sorriso logo depois, ao avistar a longa subida pelo glaciar. Consultei meu altímetro e ainda faltavam mais de 700 metros até o cume. Fiz um último descanso, me lembrando que aquele glaciar era contínuo e que não teria outra oportunidade para tal. Acima de mim as luzes da cordada que me antecedeu. E, mais à direita, uma outra luz, mais forte e misteriosa, despontava da parte superior da montanha: era a lua que, mesmo minguante, iluminava fortemente aquelas encostas inóspitas e geladas.

Comecei a subir pelo glaciar, provavelmente por volta das 04:30. Haviam trechos de neve profunda e outros de neve bastante dura. É uma parte da montanha que exige muito, tanto fisicamente, quanto psicologicamente. Foi aí que a dupla que me seguia desistiu, não sei nem se chegaram até a metade do glaciar, pois haviam ficado bem para trás. Não há muito o que dizer sobre a subida até o cume Veintimilla, apenas que o cansaço vai se confundindo com uma espécie de monotonia tediosa, uma sensação de sempre subir e nunca chegar. O mais incrível era não avistar, devido à curvatura do glaciar, a cordada dos tchecos e canadenses que não estava muito distante de mim. Os trechos de neve dura também faziam com que os indícios da rota, eventualmente, desaparecessem. Gosto da solidão da montanha, mas aqui os sinais efêmeros da presença humana faziam da solidão uma espécie de desolação. O Chimborazo é duro, realmente duro...

Quando amanheceu identifiquei uma imensa greta à esquerda do glaciar. Esta deve ser a greta Hans Meyer, pensei, lembrando-me de um croqui que havia visto em um livro que comprei em Quito. Já devo estar próximo ao cume Veintimilla, concluí. Que nada, ainda faltavam mais de 200 m pelo meu altímetro. Subitamente me deu uma vontade de gargalhar, que ideia é essa, homenagear alguém dando seu nome a uma greta!

Continuei subindo e, finalmente, vislumbrei um ponto mais acentuado que parecia ser algum cume. Foi quando avistei uma cordada descendo: eram os tchecos e canadenses. Rápidos cumprimentos e parti para o trecho final daquele quase infinito glaciar. Cheguei ao cume Veintimilla por volta das 07:30. Mas ainda não havia terminado. O Veintimilla é um cume secundário, com 6267 m de altitude. Normalmente, as ascensões guiadas vão somente até esse cume e com a cordada que me antecedeu não foi diferente: não havia nenhuma marca em direção ao cume Whymper, o principal. O cume Whymper tem 6310 m, ou seja, uns 50 m mais alto do que o Veintimilla. O problema é que um pequeno vale separa os dois cumes e deve-se descer para depois subir novamente, aumentando para quase 100 metros o desnível final.

Estava tão determinado que nem parei para descansar, ou fotografar, no cume Veintimilla. Comecei a descer, torcendo para que a neve, daí por diante, estivesse bem firme. Vã esperança! Os primeiros metros foram bem fáceis, mas, à medida em que eu avançava, encontrava trechos de neve extremamente fofa, afundando até o joelho. Quando alcancei a base do cume Whymper sabia que teria mais 100 metros para vencer. Estava realmente muito cansado, havia sido uma ascensão duríssima, mas sabia que ainda tinha bastante energia para chegar ao cume principal, bastava ter paciência e não me precipitar. Fui, então, subindo da forma mais delicada possível. Às vezes dava certo, era possível concluir uns 5 ou 6 passos mantendo-me na superfície daquela "sopa" de neve. Mas logo meu peso desfazia a camada mais rígida e eu atolava novamente. Tentei zig-zags, zig-zigs e zag-zags, mas nada funcionava perfeitamente. Cada passo era como um castigo, cada metro uma pena. Purguei, assim, todos os meus pecados, ou quase todos, tenho muitos.

Mas estava ganhando altitude e o cume se aproximava, era questão de tempo. Repentinamente a curvatura suavizou e avistei um grande platô: era o cume! Mas ainda havia o que subir e a neve estava cada vez mais fofa. Tentei identificar algum marco que definisse o cume, mas nada. A subida foi se transformando em um aclive de inclinação cada vez menor, até que percebi que estava andando na horizontal. Parecia que havia uma pequena circunferência neste ponto, mas se aquilo serviu em algum momento como marco, agora estava completamente coberto pela neve.

Estava no cume, mas não tinha forças nem para chorar!!! Havia superado o monstro e derrotado a mim mesmo: meus medos e meus anseios...

Agora é fácil, retrospectivamente, costurar estas lembranças em uma narrativa linear. Mas nestes últimos cem metros o que eu pensava, ou pensava que estava pensando, eram ideias esparsas e desconexas, que sempre conduziam a uma sensação extrema de cansaço.

E agora compreendo o sentido daquelas palavras de Fernando Pessoa que me remetem, também retrospectivamente, para esta incrível sensação de cume: "Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura".

Sentei no chão, tirei minha mochila e me dediquei a curtir a paisagem, buscando as já familiares referências visuais. Na minha confusão mental troquei o Cotopaxi com o Sangay e tudo se tornou mais confuso ainda, até que, desfeito o engano, passei a identificar todas aquelas montanhas e vulcões. Lembrei-me, então, de fotografar e filmar o cume. Busquei, em vão, uma referência segura que comprovasse onde eu cheguei. Levantei-me, peguei a filmadora e fiz uma tomada de 360 graus, numa tentativa de demostrar que estava no ponto mais alto. O mesmo procedimento adotei com a câmera fotográfica. Como não havia nenhuma rocha ou algo mais elevado onde colocar a câmera, desisti das tradicionais fotos com bandeiras e me contentei em capturar meu rosto com o fundo branco do platô do cume.



Sentei-me novamente, fechei os olhos, sonhei acordado e acordei com aquela visão de sonhos, saboreando deliciosamente toda a beleza ao meu redor.

"E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. 'Sou do tamanho do que vejo!' (...) Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia". (Fernando Pessoa)





Após mais alguns minutos comi uma barra de cereal, me hidratei e comecei o longo retorno. A monótona subida havia se convertido em, adivinhem: uma entediante descida. Para descer em segurança aquela inclinação é necessário estar familiarizado com a cramponagem francesa, além de estar com a musculatura das pernas "em dia", uma tarefa árdua depois de subir aquilo tudo. Fui alternando os lados do corpo, a medida em que os músculos das coxas, literalmente, começavam a queimar. Mas estava fazendo um bom progresso. O que eu havia demorado 4 horas para subir, desci em apenas uma.

Quase no final do glaciar o tempo começou a mudar, e para pior. Uma espessa nuvem encobriu a aresta para onde me dirigia e, aos poucos, me vi envolvido em um branco quase total. Reduzi o ritmo na esperança de que a visibilidade melhorasse, pois temia errar a direção da aresta e sair do outro lado da montanha ou, o que seria pior, descer por engano pelo glaciar Thielman com suas gretas escondidas. A estratégia deu certo e uma rápida abertura na cortina de nuvens me permitiu ajustar minha direção e chegar em segurança na aresta.

Percorri a aresta até o ponto onde termina a neve e, como teria que descer um bom trecho de rochas na encosta do El Castillo, tirei os crampons. Foi preciso somente um passo para me esparramar no chão: havia uma camada de pequenas pedrinhas redondas em cima de uma terra congelada que não fornecia nenhuma aderência. Era como caminhar por sobre milhares de bolinhas de gude. Tive que colocar novamente os crampons e não é que funcionou! Com os crampons as "bolinhas de gude" não me derrubavam e comecei uma descida forte buscando uma língua de neve que eu visualizava mais abaixo na encosta.

Nesta língua de neve, que facilitava a descida, percebi muitas pisadas indo em direção à parede lateral do El Castillo. Sem pensar muito comecei a descer rapidamente por ali, já que estava mais fácil do que me dirigir aos seracs lá embaixo à esquerda, por onde havia subido. Repentinamente olhei para cima e tive uma das visões mais aterradoras de toda essa escalada: vi, nitidamente, como o El Castillo era formado. Eram milhares e milhares de pedras encaixadas e equilibradas, esperando sua vez de cair. Ao redor, milhares de outras rochas que já haviam cumprido sua missão de projéteis voadores. Tive aquela sensação de que tinha que sair dali, imediatamente. Comecei a descer pela rota paralela à parede, pois era mais rápido do que subir novamente. Identifiquei, prontamente, aquele trecho como o caminho pelo qual havia subido na minha primeira tentativa, dez anos atrás. Sabia que havia um trecho vertical em algum lugar e torcia para que ele fosse fácil para desescalar.

Quanto mais descia, mais inclinado ficava. Surgiu o gelo e tive que a cramponar à francesa novamente. Até que me deparei em uma situação extremamente crítica: estava na borda de um lance vertical de uns 10 metros, no mínimo. Procurei alguma rocha mais firme para me estabilizar, mas nenhuma agarra confiável me deu a mão. Só podia contar com a força de meus músculos das coxas para me manter ali. Olhei para baixo e percebi que seria uma desescalada bastante difícil, rocha e gelo vertical. Mas, para iniciar a descida, eu teria que virar-me para a parede e tirar o piolet técnico da mochila. Eu estava com minha cadeirinha de escalada, justamente para eventualidades como essa, e havia levado um tornillo (parafuso) de gelo. Peguei o tornillo e coloquei-o no gelo, para criar um ponto de ancoragem onde pudesse girar meu corpo, posicionando-me para a descida, e me possibilitasse descansar um pouco. Mas o gelo já estava pouco sólido naquela hora do dia e seria bastante perigoso confiar em tal proteção.

Não tive escolha. Equilibrei-me totalmente nos calcanhares, tirei minha mochila das costas, peguei meu piolet técnico, cravei-o no gelo ao meu lado, girei o corpo e comecei a subir novamente, não iria arriscar a descer por ali. Olhei para cima uma vez mais e visualizei aqueles blocos imensos, aguardando que a gravidade os despertasse de seu precário repouso. Subi o mais rápido que pude, cramponando frontalmente e tracionando os piolets. Quando já havia vencido a parte mais íngreme, fiz uma diagonal para direta e me afastei da linha de tiro do El Castillo, indo em direção aos seracs onde estava a rota normal.

Após chegar nas proximidades dos seracs retomei a direção por onde havia subido e desci por aquele labirinto de pedras, neve e gelo. Se chegar ao cume me tomou umas 8 horas, voltar para o refúgio me consumiu umas cinco. Chegando no refúgio Whymper avisei rapidamente ao responsável que já estava de volta, em segurança. Sem tempo para descansar, coloquei todas as minhas coisas na mochila cargueira e me dirigi ao refúgio de baixo, onde o carro já devia estar me aguardando.


Nesta noite dormi o "sono dos justos" na Posada La Estación. No dia seguinte retornei a Quito, após uma breve caminhada pelos trilhos desativados, e resolvi me dedicar ao ócio. Após uma quinta-feira dedicada a compras e devaneios culturais não resisti: fui na sexta-feira para o Parque Nacional Cayembe-Coca e fiz uma caminhadinha de uns vinte e poucos quilômetros, para esticar as pernas e fechar a viagem com chave de ouro. Adeus paisagens andinas, em breve nos reencontraremos...

Também aproveitei o tempo que me restava no Equador para colocar algumas leituras em dia. Lendo um pouco de Rimbaud me deparei com a seguinte passagem, perfeita para fechar esse relato:

"Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso; pela máscara, me julgarão raça forte. Terei dinheiro; vou ser ocioso e brutal. As mulheres cuidam dos ferozes doentes de volta dos países tropicais. Entrarei nos negócios políticos. Serei salvo. Por ora sou maldito, tenho horror da pátria. O melhor é um sono bem bêbado na praia". (Arthur Rimbaud, Uma temporada no inferno)

Bem, esse negócio de entrar para a política não me agradou não, mas a ideia de tomar umas cervejas e dormir em uma praia equatoriana até que era boa. Fica para a próxima.


Dedico estas escaladas à memória de meu amigo Sérgio "Magal", que curtia, e se divertia, com os relatos das peripécias desse tal de Marcelo "Default".

Álbum de fotos:


Vídeo da expedição:

Expedição ao Equador – 2ª parte (2011)

Texto por: Marcelo Delvaux

Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.

Nesta do Equador foram escaladas quatro montanhas em sete dias, todas em solitário: Iliniza Norte (5126 m, 18/01/2011), El Corazón (4791 m, 19/01/2011), Cotopaxi (5897 m, 21/01/2011) e o famigerado Chimborazo (6310 m, 25/01/2011). 

Cotopaxi: "Mirando la abuela por la grieta"


No dia seguinte, quinta-feira, permaneci no hostal até o meio-dia. Após almoçar, eu o sr. Bladimir entramos em seu jipe e fomos para o Parque Nacional Cotopaxi. Menos de uma hora e meia depois já estávamos a 4500 m de altitude, no "estacionamento" do refúgio José Ribas, que se encontrava em algum lugar 300 m acima. Digo em algum lugar porque, ao contrário dos dias anteriores, o tempo estava totalmente fechado e eu não podia, nem de relance, ver a silhueta do Cotopaxi, quanto mais identificar o refúgio no meio da neblina e das nuvens. Após combinar o horário em que o sr. Bladimir me buscaria no dia seguinte, iniciei minha subida "às cegas". Só pude avistar o refúgio quando quase "tropecei" no mesmo. Seria possível subir a montanha com esse tempo?

Logo após minha chegada começou a nevar. E nevou, nevou, nevou. Deve ter nevado até umas 23:00. Ao contrário da última vez que estive ali, não havia muitas pessoas no refúgio. Seriam somente 3 cordadas escalando a montanha e eu subindo solo. Uma das cordadas era formada por 2 suíços com seu guia. As outras eram duas duplas, ambas lideradas por guias profissionais do Equador. Em uma dessas estava a Rosa, montanhista equatoriana que iria tentar o Cotopaxi pela segunda vez.

Passei o resto do dia me hidratando e conversando. Às 18:00 comi um caprichado macarrão liofilizado e fui dormir. Pouco depois das onze horas da noite levantei para ir ao banheiro e a Rosa e seu guia já estavam tomando seu "desayuno" e se preparando para sair. O tempo continuava fechado, creio que ainda nevava, e eu resolvi dormir mais um pouco. Acordei meia-noite e meia e iniciei minha subida uns quarenta e cinco minutos depois. Fui o último a sair do refúgio.

A rota normal atual é bem diferente daquela que eu subi na última vez que estive no Cotopaxi. A saída permanece a mesma, à direita do refúgio. Porém, sobe-se diretamente pelo glaciar em linha reta, ou melhor, em zig-zags que minimizam o esforço. Uma diferença marcante é que, agora, após os primeiros 200 m, se atravessa um verdadeiro labirinto de gretas. Estava bem tranquilo, todas as passagens e pontes de gelo estavam sólidas, somente uma demandava uma maior atenção. O único, porém, é que um traçado entre gretas não admite quedas, principalmente para quem está sozinho, sob o risco de se parar nas entranhas geladas da montanha.

À medida em que eu subia aumentava a quantidade de neve na rota, apesar do glaciar permanecer "franco", ou seja, com as gretas descobertas, consequência da nevada ininterrupta que caiu durante todo o dia. Ainda bem que saí por último, pois as outras cordadas estavam abrindo o caminho. Porém, este "conforto" não durou muito. Com uns 400 m ou pouco mais de subida eu ultrapassei os suíços e a outra dupla, que acabou por desistir do cume. Logo depois da metade alcancei a Rosa e seu guia, que já demostrava estar bem cansado e me agradeceu por assumir a dianteira.

Pela frente faltavam, ainda, mais de 400 m até o cume. Havia muita neve recente e a rota estava bem pesada. Eu me sentia muito bem e toquei para cima. A cada momento tinha que identificar onde estava a rota, pois não havia mais um traçado bem definido. Pelo menos não havia mais gretas. Cheguei na base de um grande serac (bloco de gelo) e passei a buscar uma saída pela direita, até chegar a uma encosta bastante íngreme, com muita neve depositada. O guia da Rosa gritou para que eu abrisse uma travessia horizontal com a pá do piolet. Trabalho ingrato e desgastante! Fui cavando e me equilibrando, formando um caminho horizontal que mal dava para as pontas dos pés. Olhei para baixo: uma greta imensa me espreitava, sinistra. Não podia cair, em hipótese alguma. Também temia por uma avalanche, pela quantidade de neve que havia naquela encosta íngreme acima de mim. Olhei para cima: dava para enxergar uma certa suavização da encosta mais à direita. Quis fazer uma diagonal em direção à direita, mas o guia da Rosa me disse para continuar na horizontal. Mais esforço e equilíbrio até que a cordada dos suíços nos alcançou e seu guia falou que já podíamos fazer a diagonal que eu imaginava, se prontificando a assumir a dianteira.

Parei para respirar um pouco, esperei que os dois grupos passassem pela diagonal e segui adiante. Alguns metros mais acima todos pararam para descansar. Novamente assumi a abertura da rota, pois me sentia muito bem e não queria parar muito. Deviam faltar uns 300 m, no máximo, para o cume, e a inclinação se acentuava, do mesmo modo que a profundidade da neve. Ao amanhecer cheguei na base de outro serac e vi que seria preciso fazer uma diagonal para a esquerda, onde uma escalada vertical me aguardava. Um amigo que esteve em novembro no Cotopaxi já havia me dito sobre a necessidade de se escalar verticalmente um trecho no final da rota. Tirei o piolet técnico da mochila e, sem perder tempo, iniciei a subida usando os dois piolets em tração e cramponando frontalmente: era uma sequência vertical de uns 10 m, no máximo, com um gelo bastante duro nos metros finais. Mas lindo, com um visual de tirar o fôlego (ou seria a altitude?) em pleno amanhecer!


No final da escalada técnica pude ouvir um berro de um dos suíços, provavelmente um sonoro palavrão, ao me ver superando aquele obstáculo intimidador. No alto do serac é preciso contornar outros blocos até se retornar ao glaciar. Neste ponto parei para descansar porque, dali para cima, é bem inclinado e a neve estava profunda. E, apesar de fácil, a inclinação parece aumentar com a aproximação do cume. Estava na hora de colocar o coração na ponta dos crampons. A cordada dos suíços chegou quando me preparava para partir. Todos desabaram no chão, guia e gringos, exaustos. Fui abrindo caminho em zig-zag, me sentia uma formiga subindo pela bola de um sorvete. Quando pensava ter chegado ao cume, mais uma subida. Até que, repentinamente, aquela cratera gigantesca se abriu na minha frente. Cheguei ao cume!!! Eram umas 07:00, havia gasto mais de cinco horas e meia de escalada.



Caminhei em direção à borda daquele vulcão ainda ativo e, posso garantir, foi uma das visões de cume mais bonitas que eu já tive, me emocionei de verdade. O tempo que, na véspera, estava péssimo, nesta manhã havia se transformado totalmente. Céu aberto, sem vento e uma temperatura amena que permitia fotografar e filmar à vontade. Na minha frente descortinava-se, em seu esplendor indescritível, toda a "Avenida de los Volcanes", denominação dada no século XIX pelo naturalista alemão Alexander von Humboldt àquela região do Equador que concentra uma quantidade impressionante de vulcões. Era possível identificar todas as montanhas, parecia uma aula de geografia: o Sangay, o Tungurahua, o El Altar e o Chimborazo, ao sul; os Ilinizas e o El Corazón, a oeste; e, mais ao norte, o Cayembe, além do Antisana quase a leste e do Sumaco já nas imediações da Amazônia. E muitas, muitas outras que, aos poucos, eu ia identificando, hipnotizado. De repente, o Sangay começou a soltar uma espessa fumaça negra. O quadro não podia ser mais completo e perfeito...


Pouco depois chegou um dos suíços, que se desencordaram no trecho final. Mais alguns minutos e estavam no cume os demais membros de sua cordada. Outro tempinho mais e vejo a Rosa se aproximando junto com seu guia. Que legal, ela estava conseguindo, fiquei muito feliz por ela! Peguei minha câmera e fui documentar a chegada da Rosa. Falei para ela sorrir para a foto, mas, tanto ela como seu guia, somente conseguiram me dirigir o olhar em seus esforços finais. Porém, pude perceber que ela me sorria com os olhos.



Devo ter ficado mais de meia hora no cume, já que não havia nenhum sinal de deterioração do tempo, que continuava perfeito. Filmei e fotografei à vontade. A Rosa teve uma ideia genial para compor uma foto, juntando nossas mãos e formando uma circunferência, enquadrando a cratera no centro. Incrível essa foto!


O principal perigo da descida no Cotopaxi, como em qualquer montanha no Equador, é que as condições da neve pioram sensivelmente com o aumento da temperatura, após o amanhecer. Por isso procurei não abusar e iniciei minha descida, sendo seguido, pouco depois, pelos demais. A descida foi tranquila e rápida, o único lance mais difícil e de maior risco foi desescalar o serac, além da atenção com as gretas. Acabou saindo um sol fortíssimo, tive que tirar todas minhas camadas de roupa e fiquei de camiseta. Ganhei, com isso, um nariz queimado, apesar da generosa porção de protetor que coloquei no rosto.


Lá pelas 10:30 e eu já estava lá no "estacionamento", onde o sr. Bladimir me esperava. Voltamos para El Chaupi e de lá fui para Quito, onde passei o final de semana descansando e me preparando para o desafio supremo, o Chimborazo.

No sábado a Rosa me levou para subir uma "montanhazinha" de 3500 m nas proximidades de Quito, o Cerro Ilaló, no vale de Los Chillos, um mero passeio matinal para os quiteños, mas mais alto que qualquer montanha no Brasil! Uma bela caminhada, muchas gracias Rosa. Também passei o final de semana monitorando o tempo para identificar o melhor dia para subir o Chimborazo. Os prognósticos que eu obtive apontavam para a madrugada de segunda para terça-feira. Resolvi, então, ir na segunda-feira para Riobamba e, lá chegando, partir direto para o refúgio Whymper e atacar o cume naquela noite.

Álbum de fotos:


Vídeo da expedição:

Expedição ao Equador – 1ª parte (2011)

Texto por: Marcelo Delvaux

Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.

Nesta expedição ao Equador foram escaladas quatro montanhas em sete dias, todas em solitário: Iliniza Norte (5126 m, 18/01/2011), El Corazón (4791 m, 19/01/2011), Cotopaxi (5897 m, 21/01/2011) e o famigerado Chimborazo (6310 m, 25/01/2011).

Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino". (Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Eu cheguei em Quito no sábado (15/01) à noite, após seis anos de ausência das terras equatorianas. Não sei como consegui ficar tanto tempo sem vir aqui, o Equador é um país incrível, com uma geografia e uma cultura magníficas. A proximidade com a Amazônia e com o Pacífico torna o clima instável e deixa as montanhas, quase sempre, com nuvens e névoas que lhes dão um aspecto misterioso e enigmático. Apesar das menores altitudes, quando comparada com os Andes meridionais, o aspecto físico da região andina no Equador é marcado por uma topografia bastante irregular e pela profusão de formas vulcânicas que compõem o visual peculiar e característico de suas paisagens.


Quito está situada a 2800 m de altitude, em um vale cercado por altas montanhas. De um modo geral, para os padrões das grandes metrópoles latino-americanas, a cidade está muito bem cuidada. Pela opinião dos equatorianos com quem conversei, o governo atual está sendo responsável por importantes avanços no campo social. O que me chamou a atenção, negativamente, foi o trânsito caótico nos dias úteis, muito pior do que da última vez que estive por lá. Pelo menos, nos finais de semana, as ruas ficam bem vazias e tranquilas. Outra novidade para mim foi o novo terminal de ônibus, ultramoderno (e incrivelmente longe do centro), bem diferente do romantismo caótico do terminal anterior.

Mas bacana mesmo é a "invasão" das bicicletas nas manhãs e tardes de domingos, mais uma coisa nova para mim. Diversas ruas e avenidas são fechadas ao trânsito de veículos motorizados, criando corredores de circulação para os ciclistas entre o centro histórico e o centro novo (Mariscal), passando por praças, pontos turísticos e atrativos diversos. Quando a ciclovia, inevitavelmente, cruza com alguma via de carros, guardas uniformizados alternam o fluxo, ora passam as "magrelas", ora os automóveis. Em alguns locais, barracas com água mineral gratuita (vixe, alguém já viu isto no Brasil ?!?!?!). E milhares e milhares de bicicletas, para lá e para cá.

Rumo às montanhas

Após organizar meus equipamentos no domingo (16/01) e comprar os suprimentos necessários, na segunda-feira à tarde parti para o "pueblito" de El Chaupi, pequena vila localizada a cerca de 1 hora de Quito. Tomei um ônibus para Latacunga no novo terminal "Quitumbe" (nada daquela confusão de guichês e pessoas por todos os lados, ninguém mais apregoa destinos e horários tentando capturar seus clientes no grito, agora tem painel eletrônico com chegadas e saídas, todas as empresas e plataformas estão organizadas por região geográfica, cada qual com uma cor distinta, tem trólebus integrado ao terminal, é a modernidade que chegou por lá, ou o sinal dos tempos, não sei) e desci na Panamericana (o caos aqui permanece o mesmo), no trevo de El Chaupi. Alguns minutos de espera e lá vem aquele "onibusinho" colorido, tipicamente andino, que me levaria por meros 30 centavitos até El Chaupi. Como é bom estar de volta aos Andes...

Em El Chaupi me hospedei em um refúgio de montanha chamado Hostal La Llovizna. Eu havia escolhido este hostal, a princípio, por sua localização privilegiada, aos pés de montanhas como os Ilinizas e o El Corazón (além da proximidade com o Parque Nacional Cotopaxi), e pelo preço mais barato para a hospedagem e transporte para as escaladas que eu havia planejado. Eu acrescentaria, depois de ter passado alguns dias lá, a hospitalidade e atenção de seu proprietário, o sr. Bladimir Gallo, de sua família e de seus funcionários. Altamente recomendável, não somente para montanhistas, mas para quem quer fazer trekking, praticar mountain biking ou simplesmente descansar.

A maratona montanhística que viria a seguir só serviu para confirmar algo que eu venho falando sempre para aqueles que me perguntam o que é "alta montanha": esta é uma modalidade específica de montanhismo, com suas técnicas e características peculiares e que requer experiência e habilidades também específicas. Eu destacaria três aspectos importantes que diferenciam as atividades de alta montanha, além da altitude (apesar de existirem ambientes de alta montanha em "baixas" altitudes): imprevisibilidade, mutabilidade e diversidade. A diversidade está por conta dos diferentes tipos de terreno possíveis de se encontrar em uma escalada: rochas, neve, gelo e suas variações e combinações. A mutabilidade está relacionada com as mudanças que a montanha sofre ao longo do tempo e com as diferenças de uma rota em épocas distintas do ano (às vezes de uma semana para outra, ou até mesmo de um dia para o outro). E a imprevisibilidade se dá pela impossibilidade de se conhecer, de antemão, qual configuração, dentre as diversas possibilidades, a rota a ser escalada apresentará. Daí a meu ver a insuficiência da graduação alpina francesa (voltarei a este ponto quando descrever a escalada do Chimborazo).

Iliniza Norte: "El paso de la muerte"


Na terça-feira acordei às 05:00 da manhã, tomei um rápido desjejum e às 05:30 parti em um 4x4 com o sr. Bladimir Gallo com destino a La Virgem, local situado a 3900m e ponto máximo onde chegam os carros. Eram 06:20 quando iniciei minha caminhada solitária em direção ao refúgio dos Ilinizas. Dia amanhecendo, céu limpo, o Cotopaxi majestoso descortinando-se ao fundo, subi tranquilamente em 3 horas, filmando e fotografando, os quase 800 m de desnível até o refúgio Nuevos Horizontes. Nenhuma dificuldade até então, somente quando se chega na "morena" (moraine) o percurso se torna mais duro e íngreme. O refúgio está no alto desta "morena", entre os dois Ilinizas.


A rota propriamente dita inicia-se no refúgio e segue por uma aresta até as proximidades do cume. A princípio, não apresenta maiores dificuldades, estando graduada em 5.3 (II) 70 graus. Ou seja, escalada básica em rocha. O trecho mais difícil, pela descrição da rota, seria o chamado "paso de la muerte", uma travessia exposta no final da aresta. Neste ponto é preciso contornar uma enorme torre de pedra, na verdade um cume secundário, saindo-se da aresta para a face leste da montanha. Faz-se, então, a travessia pelo "paso de la muerte" até se chegar a uma canaleta que dá acesso ao cume principal. Todas as fotos desta travessia que eu obtive na internet apresentavam escaladores encordados, mas não tinha ideia da dificuldade de passar por ali sem corda.

A partir do refúgio eu apertei o passo e me dirigi para a aresta do Iliniza Norte. Entre os dois Ilinizas pude confirmar o que o sr. Bladimir tinha dito: havia muita neve na montanha, o que mudou, drasticamente, as características da rota. Eu havia subido com botas duplas e levado meus crampons na mochila. Por sorte, quando entrei no carro, perguntei ao sr. Bladimir se seria preciso levar o piolet, pois o mesmo me parecia absolutamente desnecessário em uma rota predominantemente de rochas. Acabei voltando no meu quarto e buscando meu piolet de marcha. Sem ele teria sido impossível chegar ao cume.


A rota pela aresta é tranquila, uma sequência de escalaminhadas para vencer os diversos obstáculos rochosos no caminho. Mas é o famoso "não caia", pois a aresta é muito exposta. Apesar da baixa dificuldade técnica, uma queda está fora de cogitação. O que complicava um pouco era a presença de neve e gelo entre as rochas, que as tornavam escorregadias. Subi rapidamente até a torre de pedra, onde um sinal apontava o local onde é preciso se afastar da aresta em direção ao outro lado da montanha. Iniciei o contorno da torre e a face leste começou a se delinear: estava chegando no "paso de la muerte". Mais algumas escaladas expostas e me deparei com uma face coberta com muita neve. Do ponto onde estava era necessário descer pelas rochas e começar uma travessia horizontal: ali era o tal "paso". Mas o "paso de la muerte" foi muito mais fácil do que parecia: havia muitas e excelentes agarras, tornando a travessia bastante segura. Só não dava para cair, pois abaixo a pendente é bastante forte, um penhasco de rochas e neve.

Após o "paso de la muerte" a neve estava bastante dura e parei para calçar os crampons. A rota se tornou mais exigente e, ao mesmo tempo, linda e prazerosa (isto sem falar na vista magnífica!). Após uma longa horizontal pela neve e um desvio pela direita para suavizar a subida, ao invés de uma canaleta dando acesso ao cume principal, como era de se esperar, havia uma rampa bastante forte, com pelo menos 50 graus de inclinação, de neve compacta e dura. Impossível fazer isto sem piolet, ainda bem que levei um na mochila. Troquei os bastões de caminhada pelo piolet e venci aquele trecho com "piolet tração". Sinistro, para uma rota normalmente simples! Graduei a rota na situação que a encontre em PD+.


Cheguei, então, a uns 20 metros do cume, onde mais um setor de rochas me aguardava. Escalada simples, graduada em 5.3 (II). Quando ia partir para a investida final percebi dois grupos descendo por cordas. Aguardei que eles terminassem sua descida e escalei este trecho fácil, mas exposto. Tive que subir com os crampons, pois havia um pouco de neve e gelo entre as pedras.

Alcancei o cume pouco antes do meio-dia, foram umas 5 horas e meia desde La Virgem. O tempo começava a mudar, com muitas nuvens subindo pelos vales e já fechando a vista, que ainda era fantástica, com um mundo de montanhas ao meu redor. Na minha frente estava o Iliniza Sur. Não dava para demorar muito, já começava a ventar. Após as tradicionais lágrimas e fotos comecei a desescalar aquela delicada torre de pedra. Cheguei outra vez na canaleta coberta de neve e, no trecho mais inclinado, encontrei novamente os dois grupos retornando. Seus guias haviam montado uma ancoragem na neve com estacas e estavam descendo as pessoas pela corda de "baldinho". Dei um jeito de descer paralelamente à corda: "piolet escoba" e cramponagem francesa me permitiram vencer aquela forte pendente sem maiores problemas.



Resolvi, então, tomar uma "diretíssima" face leste abaixo, pelo glaciar, ao invés de fazer novamente a travessia e desescalar toda a aresta. Ótima decisão! A qualidade da neve me permitiu descer rapidamente, cramponando à francesa, até chegar nas rochas na base da montanha. Neste ponto, passei um rádio para o sr. Bladimir e lhe indiquei minha posição. Calculamos o horário em que eu deveria chegar a La Virgen, para que ele me buscasse de carro. Após passar por alguns obstáculos rochosos encontrei uma trilha se dirigindo até a "morena". Haviam acabado os perrengues, pelo menos nesta montanha. Cheguei em La Virgen pouco depois das 15:00, com 5 minutos de diferença para o sr. Bladimir. Cálculo perfeito! Escalada perfeita! Dia perfeito! E lá embaixo, no refúgio, um banho quente e uma refeição caprichada me aguardavam...

El Corazón: "La arista maldita"


Eu havia programado para a quarta-feira um dia de descanso, antes de partir para o Cotopaxi. Porém, conversando com o sr. Bladimir sobre o El Corazón, na volta de carro para o refúgio, ele comentou sobre a existência de uma rota, mais próxima a El Chaupi, que levava ao cume pela aresta oeste-leste. Na hora já me surgiu a brilhante ideia de subir o El Corazón por El Chaupi e descer pela rota normal. Seria, na verdade, uma travessia de montanha, subindo por um lado e descendo por outro. Com uma longa caminhada poderia chegar na vila de Aloasi e de lá pegar um ônibus para Machachi e mais outro para regressar ao refúgio em El Chaupi.

Gostei tanto da idéia que não encontrei argumentos que me convencessem a não fazer isto. Afinal, não me sentia suficientemente cansado para um dia de descanso. No dia seguinte, às 07:00 da matina, já estava no carro com o sr. Bladimir subindo por uma longa estradinha de terra em direção à aresta do El Corazón. Após deixar a estrada e me despedir do sr. Bladimir, comecei a galgar algumas cristas na montanha, buscando atingir a linha da aresta que conduzia diretamente ao cume. A vista, para variar, era deslumbrante, com o Cotopaxi a leste e os Ilinizas ao sul.



Cheguei na crista principal de onde avistei, cobertos de nuvens, os profundos abismos andinos que se projetam em direção ao oceano Pacífico. Fantástico! Por que será que nenhum guia de caminhadas (livro) sobre o Equador não inclui uma travessia entre El Chaupi e Aloasi passando pelo cume do El Corazón? A resposta viria em breve, mal sabia eu, vestida de perrengue, e dos bons.

Neste ponto uma trilha bem marcada se dirigia à aresta do El Corazon e já era possível identificar por onde a mesma subia até ganhar a borda rochosa, onde eu deveria buscar meu caminho até o cume. Um forte "acarreo", sem problemas técnicos. A rota normal do El Corazón, a propósito, por onde eu iria descer, é bem tranquila em "condições normais" (lembram-se do que eu falei sobre imprevisibilidade e mutabilidade?). Nestas condições normais pode, sim, ser considerada um trekking de altitude. Mas mesmo esta rota simples tem seus perigos e eu li, recentemente, que um montanhista europeu havia morrido ali descendo em um dia de baixa visibilidade. Afinal, é alta montanha, não se esqueçam disso...


Porém, eu não conhecia nada sobre a aresta que iria subir. A parte final, próxima ao cume, me parecia bem vertical vista de onde eu estava. Certamente envolveria algum tipo de escalada. Comecei a percorrer a aresta sem maiores problemas, a maior dificuldade era a instabilidade provocada pela areia e pedras soltas. Na medida que eu subia, a aresta se tornava mais estreita e íngreme até que surgiram alguns trechos verticais bem expostos. Não havia nenhum lance acima de 2o grau ou 3o grau. No entanto, era tudo instável, não dava para confiar em nenhuma agarra. E, muitas vezes, para se fazer um lance de escalada, era necessário vencer um íngreme "acarreo" que te jogava para baixo. Devo ter xingado meus primeiros palavrões da viagem neste trecho. Foi uma sequência de lances verticais e expostos, onde cada movimento era um susto, com o receio que uma pedra se soltasse e me projetasse para fora da montanha.


Por fim, cheguei a um cume falso. Mais acima estava o cume principal e a aresta havia se transformado em uma trilha íngreme pelo "acarreo". Maldita aresta! Agora entendi porque ninguém propôs uma travessia por ali: imagina escalar esta aresta instável com uma mochila cargueira nas costas! Alcancei o cume principal com pouco mais de duas horas e meia de subida. Já havia subido ali com a Giselle pela rota normal havia seis anos, mas naquela ocasião o tempo estava fechado e não pudemos ter a visão que agora eu contemplava. Dava até para ver o Chimborazo despontando no horizonte ao sul, por cima das nuvens.





Após uns quarenta minutos apreciando o visual iniciei a descida, que seria muito mais longa e demorada do que a subida. Foram quase 1800 m de desnível até a pequena estação de trem de Aloasi. Cheguei nesta pequena vila às 15:00. Após curtir os pequenos prazeres da chegada, Coca-Cola, batata frita e um dedo de prosa com os locais, peguei um ônibus para Machachi, onde saboreei um frango gigantesco antes de tomar o já velho conhecido onibusinho colorido para El Chaupi.

Álbum de fotos:


Vídeo da expedição:

Cerro Plata invernal (2012)

Texto por: Marcelo Delvaux

Relato da ascensão realizada em junho de 2012.


Nos Andes meridionais escalar no inverno é bem diferente do que no verão: o clima é muito mais instável e as temperaturas são consideravelmente mais baixas. Nos primeiros dias do inverno de 2012 acompanhei diariamente a previsão do tempo e, nos dias ruins, que eram bastante frequentes, o vento no cume do cerro Plata chegava a 100 km/h, com sensação térmica de -40o C, enquanto que no Aconcagua o vento era de 120 km/h no cume, com a sensação térmica a incríveis -52o C.

Cheguei a Vallecitos em uma terça-feira, no final de junho, e minha ideia era subir rápido, para aproveitar uma suposta janela de tempo bom prevista para o sábado e tentar chegar ao cume do cerro Plata (6000 m). Passei os dois primeiros dias no refúgio Mausy, localizado a uns 2900 m de altitude. Na própria terça-feira fiz uma caminhada de aclimatação subindo algumas montanhas acima de 3000 m: Andrecitos (3116 m), Arenales (3381 m), Lomas Blancas (3659 m) e dois cumes (cerro Estudiantes – 3700 m e cerro Cáucaso – 3800 m) da La Cadenita, que é a aresta que liga o Lomas Blancas ao cerro Agustín Álvares. Para a quarta-feira estava previsto um tempo bastante ruim. Mesmo assim, acordei cedo e fui até Las Veguitas (3247 m), com a intenção de subir o cerro San Bernardo (4150 m). Mas, pouco depois das 09:00, quando eu já estava a uns 3600 m começando a subida final pelo “acarreo” que leva ao cume, a previsão se confirmou, o vento aumentou muito e começou a nevar, me obrigando a voltar ao refúgio.


Nesses dois primeiros dias tive uma amostra das dificuldades de se escalar nessa região durante o inverno. O branco predominava na paisagem, contrastando com o visual árido e de pouca neve do verão. As nevascas eram constantes, o vento bem mais forte e o frio intenso, mesmo durante o dia. Logo acima do refúgio Mausy já havia bastante neve acumulada no caminho, alternando trechos de neve fofa com um gelo traiçoeiro e escorregadio e fazendo com que se gastasse o dobro do tempo para se chegar a Las Veguitas.

Na quinta-feira o céu amanheceu limpo e preparei minha mochila com a intenção de subir direto para o acampamento El Salto (4283 m). A ideia era descansar durante a sexta-feira e atacar o cume na madrugada de sábado, aproveitando a janela de tempo bom. Havia nevado bastante até uns 100 m abaixo do refúgio. Em Las Veguitas encontrei com dois montanhistas de Buenos Aires que também estavam subindo para El Salto. Chegamos a Piedra Grande (3571 m) às 14:00. Eu havia gasto mais de 4 horas até ali, sendo que, no verão, bem aclimatado, dá para fazer este trecho com carga em menos de 3 horas. Por sorte, na maior parte do caminho entre Las Veguitas e Piedra Grande a neve estava bem dura, permitindo um deslocamento rápido. Porém, a partir de Piedra Grande as condições começaram a piorar e tivemos que cruzar dois “neveros” de neve profunda, onde era preciso ter muito cuidado porque havia muitas pedras escondidas e o risco de se torcer um pé era grande.


Por volta das 16:00 chegamos na base do “acarreo” que conduz à subida final até El Salto, conhecida como Infiernillo, na verdade uma “morena” glaciar ou depósito de sedimentos, e encontramos outros dois amigos dos argentinos. Estávamos a uns 3800 m e havíamos gasto 2 horas para subir pouco mais de 200 m. O pessoal resolveu acampar ali, um lugar bastante desconfortável e exposto aos ventos. Eu resolvi continuar, com a expectativa de que, ao chegar na crista do “acarreo”, as condições da neve melhorassem. No entanto, a subida estava totalmente obstruída e encontrei o trecho de neve mais profunda até então. Em alguns pontos me afundava quase até a cintura e, ao constatar que meu progresso era extremamente lento, resolvi voltar e me juntar aos argentinos.

Quando estava procurando um lugar mais plano para colocar a barraca começou um vento fortíssimo, me impedindo de montar a mesma. O jeito foi armá-la atrás de um grande “boulder”, um local desnivelado e cheio de pedras, mas que pelo menos me oferecia uma proteção mínima contra o vento. Mesmo assim foi uma luta para montar e fixar a barraca. O vento, além de forte, trazia muita neve e, em poucos minutos, a água que estava na garrafa pendurada no lado de fora de minha mochila congelou sob os efeitos gelados da ventania. Já era quase 17:30 quando, finalmente, pude entrar na barraca e aquecer minhas mãos, que já estavam duras da batalha contra o vento. Por volta das 21:00 o vento cessou totalmente. Saí da barraca e o céu estava limpo e repleto de estrelas. Dormi confiante na previsão de tempo bom para os próximos dias.

Na sexta-feira o dia amanheceu com céu azul e uma brisa suave. Nesta época do ano amanhece tarde, entre 08:15 e 08:30. Esperamos o sol esquentar um pouco e começamos a subida em direção a El Salto, eu e os montanhistas de Buenos Aires. Logo de cara tivemos que enfrentar o trecho de neve profunda que eu havia tentado ultrapassar na véspera. Mesmo nas primeiras horas do dia a neve permanecia solta e instável, não havendo se congelado com o frio da madrugada. Gastamos mais de uma hora para abrir a rota até o alto do “acarreo”, muito esforço para avançar poucos metros. O caminho, a partir de então, vai se tornando cada vez mais íngreme até chegar ao Infiernillo (o nome já diz tudo), que é o trecho mais inclinado antes de se chegar a El Salto. Alternando trechos sem neve com outros de neve fofa, avançamos lentamente. Na parte final do Infiernillo há uma pequena travessia horizontal, antecedendo uma forte subida em curva que dá acesso ao platô onde se localiza o acampamento de El Salto. Esse ponto estava totalmente tomado pela neve, transformando a trilha fácil do verão em uma pendente de uns 45o de inclinação bastante exposta. Para complicar, a neve estava congelada e era preciso entalhar alguns degraus para subir sem os crampons. Por diversas vezes a camada de gelo da superfície se rompia e a neve mais fofa que estava embaixo, misturada com pedra e areia, cedia e desmoronava, dificultando ainda mais a subida. Com o peso da mochila era preciso ter muito cuidado para não escorregar e rolar encosta abaixo. Precisamos de quase uma hora para abrir este outro pedaço da rota e chegamos a El Salto às 15:00. Havíamos gasto umas 5 horas para vencer pouco mais de 400 m de desnível (no verão seria possível fazer esse percurso em torno de uma hora e meia).


Mas os problemas estavam só começando. Nem bem chegamos e colocamos as mochilas no chão e começou a soprar um vento furioso, na verdade um “viento blanco” que nos despejava bastante neve e pedaços de gelo, além de pequenas pedras e poeira. Tentei montar minha barraca e, após um grande esforço e muitas tentativas, consegui colocá-la de pé. Quando estava reforçando os pontos de fixação ouvi um barulho de algo se quebrando e percebi que uma das varetas havia se partido. O jeito foi colocar a barraca no chão, antes que o estrago fosse maior, e esperar uma melhora no vento (alguns dias depois constatei que a barraca estava cheia de pequenos furos, provavelmente consequência dos projéteis de gelo e pedra arremessados pelo vento).

Dois dos argentinos desistiram e desceram para o refúgio San Bernardo. Os outros dois resolveram esperar um pouco mais junto comigo, mas acabaram por desistir também, retornando para o local que havíamos acampado na véspera. Eu fiquei aguardando até as 16:30, mas o vento não dava uma trégua. Pensei em dormir dentro da barraca desmontada em uma espécie de bivaque, mas como não tinha certeza se o vento me permitiria atacar o cume essa noite, achei que o desconforto não valeria a pena. Além de tudo, o frio estava aumentando e tomei a decisão de descer.

A descida foi bem mais rápida, com a rota já aberta. Cheguei ao local do acampamento intermediário uma hora depois e encontrei os argentinos montando a barraca com dificuldade, pois o vento também era forte por ali. Não tinha vontade de passar mais uma noite desconfortável nesse local e continuei a descer. Passei por Piedra Grande quase ao anoitecer e, então, tive a ideia de voltar ao refúgio Mausy, descansar um dia e atacar o cume diretamente de lá. Na verdade, essa era uma ideia antiga, mas nunca tive a intenção de fazer isso em condições invernais, já que o desnível é imenso, mais de 3000 m, além da longa distância (uns 13 km até o cume). Mas gostei tanto dessa possibilidade que não encontrei argumentos que me convencessem a ficar em Piedra Grande. Apertei o passo e, antes das 20:30, já estava no calor do refúgio preparando um macarrão. Havia sido um dia longo e desgastante, subindo com todo peso até El Salto e descendo novamente e, para conseguir colocar minha ideia em prática, precisaria descansar bem, já que havia forçado bastante na descida para chegar o quanto antes no refúgio.

No sábado procurei acordar mais tarde e me levantei depois das 09:00 da manhã. Passei o dia dentro do refúgio lendo e procurando me alimentar e me hidratar adequadamente. A previsão era de tempo bom para o domingo e, antes de escurecer, fui para meu quarto para tentar dormir um pouco. Pouco depois chegou um guia com alguns clientes e não consegui pegar no sono como gostaria, devido ao barulho, somente dei alguns cochilos. Lá pelas onze e meia da noite me levantei, fiz um lanche rápido, troquei de roupa, peguei minha mochila e, meia-noite e quinze, saí do refúgio com o objetivo de chegar ao cume do Plata, para espanto do grupo que ainda estava acordado, tomando vinho e comemorando sei lá o que. Seria um longo dia...

A noite estava linda, com o céu estrelado e sem ventos. Subi em ritmo forte, sabendo que uma boa velocidade seria fundamental para atingir meu objetivo principal. A rota agora estava aberta até El Salto, mas não sabia sobre suas condições a partir deste ponto. Se existissem muitos trechos complicados poderia não haver tempo suficiente para chegar até o cume. Por isso apertei o passo, aproveitando a neve mais dura durante as frias horas da noite. E que noite! Chegando em Las Veguitas vislumbrei a silhueta do Vallecitos ao longe, iluminada pela fraca luz da lua crescente. Mesmo de madrugada o branco da paisagem se destacava e Las Veguitas havia se transformado em uma grande planície de gelo. Atravessei esta planície e entrei na subida que leva até Piedra Grande, uma verdadeira “autoestrada” de neve congelada. Passei direto por Piedra Grande e cheguei ao acampamento intermediário, onde pensei encontrar os argentinos, em pouco mais de duas horas e meia, menos da metade do tempo que havia gasto para subir com peso, abrindo a rota. Os argentinos não estavam mais lá, provavelmente desistiram e desceram na véspera. Eu estava sozinho na montanha e o silêncio e a sensação de solidão se fizeram mais fortes.

O trecho de neve profunda que vinha a seguir continuava em péssimas condições, retardando um pouco meu ritmo. Após vencer este obstáculo acelerei novamente até a travessia do Infiernillo, que se mostrou mais complicada do que antes. O problema era que a rota que havíamos aberto estava novamente congelada e agora a neve estava duríssima, não me permitindo talhar alguns pontos de apoio com a bota para passar com segurança. O jeito foi sacar o piolet da mochila para esse trabalho de, literalmente, quebrar o gelo, além de utilizá-lo como ferramenta de segurança em caso de uma queda. Cheguei a El Salto às 04:30 e parei rapidamente para comer alguma coisa e me hidratar. À medida que eu subia e a noite avançava, o frio também aumentava. Por isso, coloquei minha jaqueta de pena de ganso que utilizei no Cho Oyu, no Himalaia, já me preparando para um possível aumento na força do vento com a proximidade do amanhecer. Pode parecer exagero, mas subir um “seis mil” invernal nessa região requer, geralmente, a utilização de roupas e acessórios usados na escalada de um “oito mil”.

Busquei o caminho para o acampamento La Hoyada (4660 m) e fui surpreendido por um grande “nevero” que, por sorte, estava com a neve dura e perfeita para um deslocamento rápido: mais uma “autoestrada” gelada me conduzindo montanha acima. Após deixar a neve para trás procurei sinais da trilha que no verão é bastante óbvia, mas que agora apresentava poucos vestígios. Encontrei alguns totens e segui em frente, chegando a La Hoyada por volta das 06:00. Em seguida vem uma subida forte, em direção à aresta que conduz à rota normal do cerro Lomas Amarillas e a trilha, então, vai progressivamente ganhando altura margeando a encosta à esquerda até o ponto em que, abruptamente, volta a subir fortemente para chegar ao colo entre os cerros Lomas Amarillas e Vallecitos.

Porém, após a primeira subida, a trilha desapareceu e me dei conta que o final da “quebrada de Vallecitos” estava totalmente tomado pela neve. Aquele trecho corresponde ao fundo da “panela” formada por três grandes montanhas, Vallecitos (5450 m), Rincón (5369 m) e Lomas Amarillas (5141 m), com a imponente parede da face leste do Vallecitos em destaque. Meu ritmo caiu bastante, pois a neve estava bastante profunda e instável. Procurei subir pela encosta à esquerda, onde supostamente estaria a trilha, e, na medida em que subia, a neve fofa dava lugar a uma neve bem dura e placas de gelo. Apesar da dificuldade de se caminhar neste local, devido à maior inclinação e à presença de grandes blocos de pedra, achei melhor do que me afundar na neve mais abaixo. Coloquei os crampons e segui lentamente, brigando por cada metro. Este trecho me tomou muito tempo e já era mais de 08:00 quando começou a clarear e pude perceber uma tênue linha na neve onde a trilha correta se encontrava. Busquei esta linha para chegar ao ponto de subida ao colo e, por volta das 08:30, cheguei a este ponto. O acesso ao colo estava em condições piores do que o fundo do vale e a neve chegava até o joelho, em uma inclinação de uns 45o. Devo ter gasto quase uma hora para vencer um trecho ridiculamente curto e, por volta das 09:30, cheguei ao colo Lomas Amarillas – Vallecitos.
Estava preocupado com o horário. Ainda tinha uns 200 m de subida pela aresta até o outro colo que separa o Vallecitos do Plata e, de lá, mais 900 m até o cume. Como a aresta é bastante exposta, os ventos não permitem a acumulação de neve e o caminho estava fácil. Só então percebi que o tempo estava excelente, praticamente não havia vento nenhum. Esta é uma condição atípica no Cordón del Plata, principalmente no inverno, e um dos grandes problemas da ascensão ao cerro Plata é o vento fortíssimo que costuma varrer o colo Vallecitos - Plata que, por essa razão, é conhecido com o sugestivo nome de Portezuelo del Viento. Estava com sorte e minha motivação voltou a crescer. Subi a aresta rapidamente, desviando de alguns obstáculos rochosos, e só fui encontrar neve na parte final, imediatamente abaixo do colo. Este trecho se mostrou mais delicado, uma travessia em diagonal alternando neve dura e profunda que me retardou um pouco.

Cheguei ao colo Vallecitos - Plata pouco antes das 11:00 e o vento não passava de uma leve brisa, dando-me ao luxo de parar naquele local exposto para descansar um pouco, comer alguma coisa e me hidratar. Daqui em diante teria que subir muito rápido, pois não adiantava chegar ao cume e não ter tempo suficiente para descer as partes mais complicadas ainda de dia. Meu objetivo era estar de volta a La Hoyada até as 19:00, aproveitado a luz do dia para descer os dois colos. Para isso, deveria chegar ao cume até as 15:00 ou 15:30, no máximo, tendo que subir 900 m em quatro horas.



Apertei o passo novamente e comecei a subir o mais rápido que pude, levando em conta que já havia subido 2100 m em onze horas intensas. O caminho agora segue uma pendente mais suave e longa e a distância até ao cume é de quase 3,5 km. O ganho de altitude no início é lento e o lado psicológico começa a falar mais alto: é preciso ter paciência e seguir adiante. Finalmente, cheguei à subida final que termina no falso cume, um zig-zag interminável por um “acarreo” instável de pedras soltas. Para chegar ao “acarreo” é preciso atravessar a parte baixa do glaciar, onde a neve estava profunda e difícil de ser percorrida. Eu torcia para que houvesse neve no “acarreo”, deixando-o um pouco mais sólido. Porém, após o grande esforço para atravessar o glaciar, constatei que não havia neve dali para cima e comecei a subir lentamente, buscando os trechos mais firmes e as curvas mais abertas que suavizavam a inclinação. Na metade do caminho mudei de ideia e optei por subir pelo glaciar, pois o progresso pelo “acarreo” estava bastante lento e desgastante. Por sorte, a neve na parte superior do glaciar parecia em melhores condições. Coloquei novamente os crampons e retomei a subida. Minha decisão se mostrou acertada e meu ritmo aumentou consideravelmente. Quando vislumbrei os restos do helicóptero nas proximidades do falso cume me senti aliviado. Contornei pela extremidade do glaciar e subi uma pequena e última rampa de neve para chegar ao cume verdadeiro com suas cruzes. Olhei no relógio e estava exatamente no horário limite: 15:30. Havia conseguido vencer o desafio que me havia proposto, subindo quase 3100 m até o cume no inverno em pouco mais de 15 horas.



Fiquei no cume por uns quinze minutos, curtindo o visual magnífico com aquele mundo de montanhas ao meu redor repleto de gigantes como o Aconcagua e o Tupungato, além do impressionante Macizo de La Jaula com as torres do Cordón del Peine em evidência. “Quantas vidas seriam necessárias para subir todos esses cumes?”, pensei. Uma longa descida me esperava e, após descansar um pouco e registrar o momento em algumas fotografias, preparei minha mochila para tomar o caminho de volta. O montanhismo descrito dessa maneira pode parecer algo irracional ou sem sentido: 15 horas de subida e “sofrimento” para apenas 15 minutos no cume! Mas, ao contrário, vejo isso como uma metáfora repleta de significação. É com ironia que agora me vem à cabeça algumas observações do narrador anônimo das Notas do subsolo, de Dostoievski, que transcrevo aqui: “E porque os senhores estão assim tão firme e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? A razão não estará cometendo um erro quanto às vantagens? Quem sabe o homem ame não apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar?”, ou ainda, “Eu, por exemplo, naturalmente quero viver para satisfazer toda a minha capacidade de vida, e não para satisfazer apenas minha capacidade racional, ou seja, talvez a vigésima parte de toda a minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Ela sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (...); já a natureza humana, esta age como um todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente – e, mesmo mentindo, está vivendo”.

O cume é uma analogia perfeita para a impermanência e transitoriedade das coisas do mundo e o esforço se chegar lá nos ajuda na percepção desse sentido de contingência: mal atingimos o ponto mais alto e já iniciamos a descida, ninguém consegue permanecer no topo por muito tempo e toda glória é efêmera. E a glória no montanhismo não é diferente. Infelizmente, muitos montanhistas tentam, de forma arrogante, transformar em glória perene momentos de realização pessoal, enaltecendo desproporcionalmente seus feitos. O montanhismo, porém, é um esporte sem plateia, pódio ou aplausos, e sem vencidos ou vencedores. Somente vencemos a nós mesmos superando os desafios a que nos propomos, que são definidos por nossas limitações, daí o caráter efêmero de qualquer realização: percebemos que a vitória foi sobre um insignificante limite pessoal, que não é nada se comparado à grandeza da montanha.



Desci diretamente pelo glaciar até reencontrar a rota logo abaixo do “acarreo”. Chegando na trilha tirei os crampons e tentei caminhar o mais rápido possível os quase 3 km que me levariam de volta ao colo Vallecitos – Plata. O dia continuava sem ventos e passei pelo colo sem problemas. Optei por uma descida direta para o colo Vallecitos – Lomas Blancas, tentando evitar a travessia coberta de neve da trilha. A descida desse outro colo me preocupava, devido à grande quantidade de neve acumulada, mas acabou sendo bem rápida e tranquila. Atravessei o fundo da “panela” da quebrada Vallecitos aproveitando os vestígios da rota que eu havia aberto e cheguei a La Hoyada com as últimas luzes do dia, logo depois das 19:00. Pouco depois os vestígios da trilha desapareceram e continuei, já de noite, me orientando pelo rumo. Não existe risco de se perder nesse trecho, pois basta descer a quebrada para chegar a El Salto, mas tive uma interessante sensação de “estranhamento” descendo no escuro sem referências do caminho: de repente, as montanhas a minha volta me pareceram muito mais altas e imponentes do que na véspera. Em menos de uma hora cheguei a El Salto e resolvi fazer uma parada de descanso.

Já passava das 20:00 quando reiniciei a descida. Havia bebido o que me restava de água e teria que chegar a Las Veguitas para me reidratar novamente. Até então, estava bebendo pequenos goles de água em intervalos regulares. Mas foi só a água acabar para começar uma sede quase insuportável. Minha lanterna “comedora de pilhas” também começou a apresentar uma luz mais fraca, dificultando a visualização do caminho. Cansado, sedento e enxergando mal tive que diminuir o ritmo, gastando umas 3 horas até Las Veguitas, mais do que havia gasto dois dias atrás descendo com uns 25 quilos nas costas. Aquela planície congelada parecia interminável e fantasmagórica sob a luz tênue de minha lanterna quando, finalmente, ouvi o barulho da água corrente do rio. Enchi minha garrafa, sentei em uma pedra e bebi prazerosamente um litro de água. Ao fundo, como na véspera, a lua crescente realçava os contornos brancos do Cordón del Plata. Foi preciso quase uma hora para terminar a descida até o refúgio. Cheguei lá por volta de meia-noite e meia, completando mais de 24 horas de ataque ao cume, o mais longo que já havia feito!

Álbum de fotos:
Cerro Plata (6000 m) Invernal 2012