Texto por: Marcelo Delvaux
Relato da ascensão realizada em janeiro de 2013.
Relato da ascensão realizada em janeiro de 2013.
Chegando aos pés do gigante
Após um breve descanso comecei a
subir. Já passava das 13:00 e o céu estava escuro e ameaçador, mas não havia
alternativa, teria que vencer os 650 m de desnível para alcançar o passo e
encontrar um lugar para acampar. Eu já havia me abrigado e trocado o boné por
um gorro, pois o frio aumentava e começava a ventar mais forte. Com todo o peso
que eu carregava teria, no mínimo, umas 4 horas de subida pela frente. O início
até que não foi tão difícil, já que a inclinação, que ainda era suportável, era
“negociada” através de zigue-zagues que suavizavam um pouco o percurso. Com
aproximadamente duas horas de subida cheguei a uma área mais ou menos plana e
com sinais de ser utilizada como acampamento intermediário. Foi quando começou
a chover e a nevar, simultaneamente. Era uma neve úmida misturada com uma chuva
forte o suficiente para me encharcar. Deu vontade de acampar ali mesmo, mas
ainda estava longe do objetivo do dia e o lugar era bem desconfortável.
Coloquei a roupa impermeável, respirei fundo e continuei a subir.
Desse ponto em diante o trajeto
muda drasticamente, e para pior: a inclinação aumenta significativamente e os
zigue-zagues praticamente desaparecem, sendo substituídos por rampas de pedras
soltas e areia fofa que fazem da subida um verdadeiro martírio. As pedras
estavam molhadas e começou a acumular um pouco de neve, dificultando ainda mais
o que já era bastante duro. A trilha sonora ajudava a realçar o lado sinistro
do cenário, com o barulho de seguidas avalanches ecoando pelos vales.
Fui ganhando terreno lentamente e
percebi que estava me encaminhando para a parte mais estreita da aresta que me
levaria ao passo. Eu comecei a subir à direita da aresta e, em mais uma hora de
esforço extremo, a trilha passou para o lado esquerdo. As nuvens baixas sempre
me davam a impressão de que estava chegando ao passo, mas era pura ilusão: o
topo de uma rampa me levava a outra tão inclinada quanto à anterior. A nevasca
não dava sinais de melhora e, finalmente, avistei uma passagem estreita mais
acima que parecia ser o topo da aresta. Já era cinco horas da tarde e, apesar
de ter mais 4 horas de luz, estava preocupado se encontraria um lugar plano
para armar a barraca. Queria fazer isso o quanto antes, pois estava muito
cansado e o tempo bastante feio. O ideal seria acampar próximo do passo e não
ter que entrar na outra aresta, que me conduziria até o glaciar do Marmolejo,
pois isso significaria novas subidas sem a certeza de quando encontraria um
lugar plano. Quando alcancei a passagem que havia avistado, respirei aliviado:
estava no passo. Incrível como alguém conseguiu descobrir essa brecha na
montanha para cruzá-la para o outro lado! No meio das nuvens um grande abismo
se anunciou na vertente oposta e percebi a trilha descendo para o norte em
direção ao vale do rio Yeso. Mas o melhor de tudo foi ter avistado, uns 20 ou
30 m mais abaixo, na encosta, uma pequena plataforma. Já tinha onde colocar
minha barraca.
Desci no meio das pedras cobertas
de neve e alcancei a plataforma. Parecia feita sob medida, totalmente plana e
do tamanho exato da barraca. As pedras me ofereciam um suporte perfeito e,
rapidamente, já estava com o acampamento armado. O problema foi entrar na
barraca e colocar as coisas lá dentro. Nevava e ventava bastante e foi difícil
não molhar o interior. Pelo menos lá dentro estava bem quente e abrigado, é o
que eu chamo de minha “ilha de conforto”, onde tenho roupas limpas e secas, um
saco de dormir convidativo, comida, telefone (satelital) para falar com quem
quiser e diversão (música e um livro), isolando-me das forças da natureza que
imperam do lado de fora. Tirei minha toalha da mochila, sequei tudo como pude e
fui providenciar a água. Buscar neve não seria problema, já que havia muitos
centímetros acumulados ao redor da barraca e das pedras. Com pouco esforço,
enchi um saco plástico com neve suficiente para uns 3 litros de água.
Após uma refeição liofilizada que
me pareceu excelente e de me hidratar bastante, peguei o telefone satelital e
resolvi ligar para a Giselle no Brasil, para tentar obter uma previsão de tempo
atualizada. Estávamos na segunda-feira e o prognóstico que eu havia conseguido uns
dias antes dizia que na quarta-feira haveria uma boa janela para tentar o cume,
com céu aberto e ventos suaves. A partir
de quinta-feira o tempo, supostamente, permaneceria estável, mas os ventos
aumentariam progressivamente. O problema seria me posicionar na montanha em um
ponto adequado para poder fazer o ataque ao cume na quarta. Do jeito que estava
nevando havia o risco de não conseguir desmontar o acampamento para continuar
subindo, no dia seguinte. A neve acumulada também poderia ser um problema
sério. Aproveitando-me do conforto tecnológico trazido pela comunicação
satelital, conversei com a Giselle e ela ficou de buscar a previsão. Meia hora
depois liguei novamente e ela já tinha o prognóstico em mãos: teríamos mais um
dia de nevasca (era esperado mais uns 21 cm de precipitação) e, no final da
tarde de terça-feira, o tempo iria melhorar, sendo que a quarta-feira seria de
sol e sem ventos. Era pagar para ver! Li por algum tempo e dormi com o barulho
da neve caindo no teto da barraca.
O dia amanheceu coberto por uma
fina camada de nuvens que deixava, de tempos em tempos, o céu azul mostrar sua
cara. Talvez a previsão de nevasca não se concretizasse, pensei otimista.
Aproveitei a melhora aparente do clima para desmontar minha barraca e preparar
minha mochila para subir em direção ao glaciar. Mas foi uma pequena e pouco
duradoura trégua: quando coloquei a mochila nas costas, nuvens densas e baixas
já tomavam conta da montanha e a trilha que subia pela aresta desaparecia
envolta no branco da paisagem. Subi pelas pedras, alcancei a trilha e fui em
direção da aresta. Com a visibilidade bastante prejudicada, esse trecho dava a
impressão de ser bastante exposto, com alguns passos de escalada se anunciando
por debaixo da neblina. Somente na volta, com o tempo aberto, pude perceber que
o grau de exposição não era assim tão alto, bastando apenas certo cuidado para
vencer alguns degraus de pedra que me levaram até uma área plana e com bastante
neve. Se no dia anterior eu tivesse continuado a subir por mais vinte minutos,
teria encontrado um lugar muito mais adequado para acampar, mas não havia como
adivinhar!
Nesse ponto começou novamente a
nevar e não havia nenhum sinal de trilha, já que estava tudo coberto de branco.
Deixei minha mochila em uma pedra e fui investigar o caminho, encontrando os
totens que me indicavam a direção a seguir. Continuei a subir e vislumbrei, à
direita, quando as nuvens aos meus pés se abriam momentaneamente, alguns
abismos profundos. Percebi que estava caminhando por cima dos imensos paredões
de rocha da quebrada do Estero Marmolejo, pelos quais eu havia passado antes de
chegar ao acampamento base. Esses paredões eram formados por várias fendas
verticais de onde, ocasionalmente, se precipitavam finas cascatas de gelo.
Chegando a uns 4400 m de altitude encontrei água corrente por debaixo das
pedras e da neve: seguramente a nascente de um daqueles afluentes do Estero
Marmolejo que eu havia cruzado no dia anterior, lá embaixo no vale, e que
descia as encostas da montanha escavando essas impressionantes fendas na rocha.
Nas imediações havia excelentes pontos para acampar, mas eu queria atingir um
ponto mais alto, para diminuir o desnível do ataque ao cume. Quando cheguei a
4600 m encontrei outra área plana bastante abrigada atrás de uma pedra, com
espaço para pelo menos duas barracas. Logo à frente uma forte subida se
anunciava e desconfiei que esse talvez fosse o último local adequado para se
acampar, antes de chegar ao acampamento avançado localizado na base do glaciar,
a aproximadamente 5000 m.
A nevasca havia parado e resolvi
deixar a mochila nesse local para investigar a área. Subi por uma morena
coberta de neve e, à minha direita, surgiu um imenso campo de penitentes, que
formava a parte baixa do glaciar do Marmolejo. Continuei subindo, atravessei um
canal congelado por entre os penitentes e cheguei à base da parede que havia
avistado de longe. Era uma subida bastante forte e íngreme e pensei que não
valeria a pena levar todo o peso para cima. O ideal era acampar por ali mesmo,
aproveitando o restante do dia para derreter neve, me hidratar e fazer os
preparativos para tentar o cume no dia seguinte. Ainda era cedo, pouco mais de
14:00, e teria bastante tempo para descansar. Gastei uns quinze minutos para
regressar onde havia deixado minha mochila e foi só pegar a barraca que começou
a nevar novamente. Nevar e ventar... E como eu estava próximo do glaciar, o
vento rapidamente se converteu em um “viento blanco”, me jogando pedaços de
gelo que doíam como pequenas agulhas espetadas por cima da roupa. Mais uma vez
tive que armar a barraca em condições precárias. Fiz tudo o mais rápido
possível, tomando a precaução de deixar a barraca bem firme para resistir à ventania.
Mais uma vez minha “ilha de conforto” estava montada e me meti em seu interior,
para relaxar um pouco.
O restante do dia nevou muito e a
neve, rapidamente, se acumulou ao redor da barraca. Se por um lado isso
facilitava o trabalho de produzir água, por outro me deixava preocupado em
relação às condições que eu encontraria no glaciar, já que teria que vencer
1500 m de desnível até o cume, tarefa nada fácil se houvesse muita neve fresca
depositada. Por volta das 19:00 liguei para a Giselle que, após consultar a
previsão do tempo, me disse que à noite realmente iria parar de nevar e que o dia seguinte seria
ensolarado e com ventos fracos. A princípio não acreditei e, enquanto fazia
algumas piadinhas em relação ao clima, senti um mormaço aquecendo a barraca.
Abri a porta dianteira e, para minha surpresa, o céu estava se abrindo e o sol começando
a se impor. Incrível, o prognóstico da Giselle havia se confirmado enquanto eu
ainda estava com ela ao telefone.
Logo depois preparei minha refeição
e algo terrível aconteceu: fui ligar meu MP3 enquanto arrumava a mochila que
usaria no ataque ao cume e o mesmo não funcionou. Constatei que o botão de
“lock” havia emperrado. O bendito botão se movia, mas provavelmente havia se
desconectado do circuito e não conseguia destravar o aparelho, que com o “lock”
ativado não funciona. Ficar sem música na barraca, para mim, é pior do que
ficar sem água. Interrompi os preparativos, peguei meu canivete, abri o MP3 e
“passei a faca” no circuito integrado, no local onde imaginei que ficava o
travamento do aparelho. E não é que funcionou, depois de várias tentativas?
Terminei de separar tudo o que necessitaria no dia seguinte ao som de Victor
Jara, coloquei o relógio para despertar às 03:45 e entrei no saco de dormir,
sentindo não mais o barulho da chuva ou da neve, mas o leve calor do sol do fim
do dia que, finalmente, havia vencido a batalha contra o mau tempo. Além, é
claro, das notas musicais do MP3 ressuscitado. Mal sabia o que o dia seguinte
reservaria para mim.
Expedição ao Marmolejo (6108 m) 2013 |
Nenhum comentário:
Postar um comentário