Texto por: Marcelo Delvaux
Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.
Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.
Nesta expedição ao Equador foram escaladas
quatro montanhas em sete dias, todas em solitário: Iliniza Norte (5126 m, 18/01/2011),
El Corazón (4791 m, 19/01/2011), Cotopaxi (5897 m, 21/01/2011) e o famigerado
Chimborazo (6310 m, 25/01/2011).
Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já
não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e
não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a
vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino".
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)
Eu cheguei em Quito no sábado
(15/01) à noite, após seis anos de ausência das terras equatorianas. Não sei
como consegui ficar tanto tempo sem vir aqui, o Equador é um país incrível, com
uma geografia e uma cultura magníficas. A proximidade com a Amazônia e com o
Pacífico torna o clima instável e deixa as montanhas, quase sempre, com nuvens
e névoas que lhes dão um aspecto misterioso e enigmático. Apesar das menores
altitudes, quando comparada com os Andes meridionais, o aspecto físico da
região andina no Equador é marcado por uma topografia bastante irregular e pela
profusão de formas vulcânicas que compõem o visual peculiar e característico de
suas paisagens.
Quito está situada a 2800 m de
altitude, em um vale cercado por altas montanhas. De um modo geral, para os
padrões das grandes metrópoles latino-americanas, a cidade está muito bem
cuidada. Pela opinião dos equatorianos com quem conversei, o governo atual está
sendo responsável por importantes avanços no campo social. O que me chamou a
atenção, negativamente, foi o trânsito caótico nos dias úteis, muito pior do
que da última vez que estive por lá. Pelo menos, nos finais de semana, as ruas
ficam bem vazias e tranquilas. Outra novidade para mim foi o novo terminal de
ônibus, ultramoderno (e incrivelmente longe do centro), bem diferente do
romantismo caótico do terminal anterior.
Mas bacana mesmo é a
"invasão" das bicicletas nas manhãs e tardes de domingos, mais uma
coisa nova para mim. Diversas ruas e avenidas são fechadas ao trânsito de
veículos motorizados, criando corredores de circulação para os ciclistas entre
o centro histórico e o centro novo (Mariscal), passando por praças, pontos
turísticos e atrativos diversos. Quando a ciclovia, inevitavelmente, cruza com
alguma via de carros, guardas uniformizados alternam o fluxo, ora passam as
"magrelas", ora os automóveis. Em alguns locais, barracas com água
mineral gratuita (vixe, alguém já viu isto no Brasil ?!?!?!). E milhares e
milhares de bicicletas, para lá e para cá.
Rumo às montanhas
Após organizar meus equipamentos
no domingo (16/01) e comprar os suprimentos necessários, na segunda-feira à
tarde parti para o "pueblito" de El Chaupi, pequena vila localizada a
cerca de 1 hora de Quito. Tomei um ônibus para Latacunga no novo terminal
"Quitumbe" (nada daquela confusão de guichês e pessoas por todos os
lados, ninguém mais apregoa destinos e horários tentando capturar seus clientes
no grito, agora tem painel eletrônico com chegadas e saídas, todas as empresas
e plataformas estão organizadas por região geográfica, cada qual com uma cor
distinta, tem trólebus integrado ao terminal, é a modernidade que chegou por
lá, ou o sinal dos tempos, não sei) e desci na Panamericana (o caos aqui
permanece o mesmo), no trevo de El Chaupi. Alguns minutos de espera e lá vem
aquele "onibusinho" colorido, tipicamente andino, que me levaria por
meros 30 centavitos até El Chaupi. Como é bom estar de volta aos Andes...
Em El Chaupi me hospedei em um
refúgio de montanha chamado Hostal La Llovizna. Eu havia escolhido este hostal,
a princípio, por sua localização privilegiada, aos pés de montanhas como os
Ilinizas e o El Corazón (além da proximidade com o Parque Nacional Cotopaxi), e
pelo preço mais barato para a hospedagem e transporte para as escaladas que eu
havia planejado. Eu acrescentaria, depois de ter passado alguns dias lá, a
hospitalidade e atenção de seu proprietário, o sr. Bladimir Gallo, de sua
família e de seus funcionários. Altamente recomendável, não somente para
montanhistas, mas para quem quer fazer trekking, praticar mountain biking ou
simplesmente descansar.
A maratona montanhística que
viria a seguir só serviu para confirmar algo que eu venho falando sempre para
aqueles que me perguntam o que é "alta montanha": esta é uma
modalidade específica de montanhismo, com suas técnicas e características
peculiares e que requer experiência e habilidades também específicas. Eu
destacaria três aspectos importantes que diferenciam as atividades de alta
montanha, além da altitude (apesar de existirem ambientes de alta montanha em
"baixas" altitudes): imprevisibilidade, mutabilidade e diversidade. A
diversidade está por conta dos diferentes tipos de terreno possíveis de se
encontrar em uma escalada: rochas, neve, gelo e suas variações e combinações. A
mutabilidade está relacionada com as mudanças que a montanha sofre ao longo do
tempo e com as diferenças de uma rota em épocas distintas do ano (às vezes de
uma semana para outra, ou até mesmo de um dia para o outro). E a
imprevisibilidade se dá pela impossibilidade de se conhecer, de antemão, qual
configuração, dentre as diversas possibilidades, a rota a ser escalada
apresentará. Daí a meu ver a insuficiência da graduação alpina francesa
(voltarei a este ponto quando descrever a escalada do Chimborazo).
Iliniza Norte: "El paso
de la muerte"
Na terça-feira acordei às 05:00
da manhã, tomei um rápido desjejum e às 05:30 parti em um 4x4 com o sr.
Bladimir Gallo com destino a La Virgem, local situado a 3900m e ponto máximo
onde chegam os carros. Eram 06:20 quando iniciei minha caminhada solitária em
direção ao refúgio dos Ilinizas. Dia amanhecendo, céu limpo, o Cotopaxi
majestoso descortinando-se ao fundo, subi tranquilamente em 3 horas, filmando e
fotografando, os quase 800 m de desnível até o refúgio Nuevos Horizontes.
Nenhuma dificuldade até então, somente quando se chega na "morena"
(moraine) o percurso se torna mais duro e íngreme. O refúgio está no alto desta
"morena", entre os dois Ilinizas.
A rota propriamente dita
inicia-se no refúgio e segue por uma aresta até as proximidades do cume. A princípio,
não apresenta maiores dificuldades, estando graduada em 5.3 (II) 70 graus. Ou
seja, escalada básica em rocha. O trecho mais difícil, pela descrição da rota,
seria o chamado "paso de la muerte", uma travessia exposta no final
da aresta. Neste ponto é preciso contornar uma enorme torre de pedra, na
verdade um cume secundário, saindo-se da aresta para a face leste da montanha.
Faz-se, então, a travessia pelo "paso de la muerte" até se chegar a
uma canaleta que dá acesso ao cume principal. Todas as fotos desta travessia
que eu obtive na internet apresentavam escaladores encordados, mas não tinha ideia
da dificuldade de passar por ali sem corda.
A partir do refúgio eu apertei o
passo e me dirigi para a aresta do Iliniza Norte. Entre os dois Ilinizas pude
confirmar o que o sr. Bladimir tinha dito: havia muita neve na montanha, o que
mudou, drasticamente, as características da rota. Eu havia subido com botas
duplas e levado meus crampons na mochila. Por sorte, quando entrei no carro,
perguntei ao sr. Bladimir se seria preciso levar o piolet, pois o mesmo me
parecia absolutamente desnecessário em uma rota predominantemente de rochas.
Acabei voltando no meu quarto e buscando meu piolet de marcha. Sem ele teria sido
impossível chegar ao cume.
A rota pela aresta é tranquila,
uma sequência de escalaminhadas para vencer os diversos obstáculos rochosos no
caminho. Mas é o famoso "não caia", pois a aresta é muito exposta.
Apesar da baixa dificuldade técnica, uma queda está fora de cogitação. O que
complicava um pouco era a presença de neve e gelo entre as rochas, que as
tornavam escorregadias. Subi rapidamente até a torre de pedra, onde um sinal
apontava o local onde é preciso se afastar da aresta em direção ao outro lado
da montanha. Iniciei o contorno da torre e a face leste começou a se delinear:
estava chegando no "paso de la muerte". Mais algumas escaladas
expostas e me deparei com uma face coberta com muita neve. Do ponto onde estava
era necessário descer pelas rochas e começar uma travessia horizontal: ali era
o tal "paso". Mas o "paso de la muerte" foi muito mais
fácil do que parecia: havia muitas e excelentes agarras, tornando a travessia
bastante segura. Só não dava para cair, pois abaixo a pendente é bastante
forte, um penhasco de rochas e neve.
Após o "paso de la
muerte" a neve estava bastante dura e parei para calçar os crampons. A
rota se tornou mais exigente e, ao mesmo tempo, linda e prazerosa (isto sem
falar na vista magnífica!). Após uma longa horizontal pela neve e um desvio
pela direita para suavizar a subida, ao invés de uma canaleta dando acesso ao
cume principal, como era de se esperar, havia uma rampa bastante forte, com
pelo menos 50 graus de inclinação, de neve compacta e dura. Impossível fazer
isto sem piolet, ainda bem que levei um na mochila. Troquei os bastões de
caminhada pelo piolet e venci aquele trecho com "piolet tração".
Sinistro, para uma rota normalmente simples! Graduei a rota na situação que a
encontre em PD+.
Cheguei, então, a uns 20 metros
do cume, onde mais um setor de rochas me aguardava. Escalada simples, graduada
em 5.3 (II). Quando ia partir para a investida final percebi dois grupos
descendo por cordas. Aguardei que eles terminassem sua descida e escalei este
trecho fácil, mas exposto. Tive que subir com os crampons, pois havia um pouco
de neve e gelo entre as pedras.
Alcancei o cume pouco antes do
meio-dia, foram umas 5 horas e meia desde La Virgem. O tempo começava a mudar,
com muitas nuvens subindo pelos vales e já fechando a vista, que ainda era
fantástica, com um mundo de montanhas ao meu redor. Na minha frente estava o
Iliniza Sur. Não dava para demorar muito, já começava a ventar. Após as
tradicionais lágrimas e fotos comecei a desescalar aquela delicada torre de
pedra. Cheguei outra vez na canaleta coberta de neve e, no trecho mais
inclinado, encontrei novamente os dois grupos retornando. Seus guias haviam
montado uma ancoragem na neve com estacas e estavam descendo as pessoas pela
corda de "baldinho". Dei um jeito de descer paralelamente à corda:
"piolet escoba" e cramponagem francesa me permitiram vencer aquela
forte pendente sem maiores problemas.
Resolvi, então, tomar uma
"diretíssima" face leste abaixo, pelo glaciar, ao invés de fazer
novamente a travessia e desescalar toda a aresta. Ótima decisão! A qualidade da
neve me permitiu descer rapidamente, cramponando à francesa, até chegar nas
rochas na base da montanha. Neste ponto, passei um rádio para o sr. Bladimir e
lhe indiquei minha posição. Calculamos o horário em que eu deveria chegar a La
Virgen, para que ele me buscasse de carro. Após passar por alguns obstáculos
rochosos encontrei uma trilha se dirigindo até a "morena". Haviam
acabado os perrengues, pelo menos nesta montanha. Cheguei em La Virgen pouco
depois das 15:00, com 5 minutos de diferença para o sr. Bladimir. Cálculo
perfeito! Escalada perfeita! Dia perfeito! E lá embaixo, no refúgio, um banho
quente e uma refeição caprichada me aguardavam...
El Corazón: "La arista
maldita"
Eu havia programado para a
quarta-feira um dia de descanso, antes de partir para o Cotopaxi. Porém,
conversando com o sr. Bladimir sobre o El Corazón, na volta de carro para o
refúgio, ele comentou sobre a existência de uma rota, mais próxima a El Chaupi,
que levava ao cume pela aresta oeste-leste. Na hora já me surgiu a brilhante ideia
de subir o El Corazón por El Chaupi e descer pela rota normal. Seria, na
verdade, uma travessia de montanha, subindo por um lado e descendo por outro.
Com uma longa caminhada poderia chegar na vila de Aloasi e de lá pegar um
ônibus para Machachi e mais outro para regressar ao refúgio em El Chaupi.
Gostei tanto da idéia que não
encontrei argumentos que me convencessem a não fazer isto. Afinal, não me
sentia suficientemente cansado para um dia de descanso. No dia seguinte, às
07:00 da matina, já estava no carro com o sr. Bladimir subindo por uma longa
estradinha de terra em direção à aresta do El Corazón. Após deixar a estrada e
me despedir do sr. Bladimir, comecei a galgar algumas cristas na montanha,
buscando atingir a linha da aresta que conduzia diretamente ao cume. A vista,
para variar, era deslumbrante, com o Cotopaxi a leste e os Ilinizas ao sul.
Cheguei na crista principal de
onde avistei, cobertos de nuvens, os profundos abismos andinos que se projetam
em direção ao oceano Pacífico. Fantástico! Por que será que nenhum guia de
caminhadas (livro) sobre o Equador não inclui uma travessia entre El Chaupi e
Aloasi passando pelo cume do El Corazón? A resposta viria em breve, mal sabia
eu, vestida de perrengue, e dos bons.
Neste ponto uma trilha bem
marcada se dirigia à aresta do El Corazon e já era possível identificar por
onde a mesma subia até ganhar a borda rochosa, onde eu deveria buscar meu
caminho até o cume. Um forte "acarreo", sem problemas técnicos. A
rota normal do El Corazón, a propósito, por onde eu iria descer, é bem
tranquila em "condições normais" (lembram-se do que eu falei sobre
imprevisibilidade e mutabilidade?). Nestas condições normais pode, sim, ser
considerada um trekking de altitude. Mas mesmo esta rota simples tem seus
perigos e eu li, recentemente, que um montanhista europeu havia morrido ali
descendo em um dia de baixa visibilidade. Afinal, é alta montanha, não se
esqueçam disso...
Porém, eu não conhecia nada sobre
a aresta que iria subir. A parte final, próxima ao cume, me parecia bem
vertical vista de onde eu estava. Certamente envolveria algum tipo de escalada.
Comecei a percorrer a aresta sem maiores problemas, a maior dificuldade era a
instabilidade provocada pela areia e pedras soltas. Na medida que eu subia, a
aresta se tornava mais estreita e íngreme até que surgiram alguns trechos
verticais bem expostos. Não havia nenhum lance acima de 2o grau ou 3o grau. No
entanto, era tudo instável, não dava para confiar em nenhuma agarra. E, muitas
vezes, para se fazer um lance de escalada, era necessário vencer um íngreme
"acarreo" que te jogava para baixo. Devo ter xingado meus primeiros
palavrões da viagem neste trecho. Foi uma sequência de lances verticais e
expostos, onde cada movimento era um susto, com o receio que uma pedra se
soltasse e me projetasse para fora da montanha.
Por fim, cheguei a um cume falso.
Mais acima estava o cume principal e a aresta havia se transformado em uma
trilha íngreme pelo "acarreo". Maldita aresta! Agora entendi porque
ninguém propôs uma travessia por ali: imagina escalar esta aresta instável com
uma mochila cargueira nas costas! Alcancei o cume principal com pouco mais de
duas horas e meia de subida. Já havia subido ali com a Giselle pela rota normal
havia seis anos, mas naquela ocasião o tempo estava fechado e não pudemos ter a
visão que agora eu contemplava. Dava até para ver o Chimborazo despontando no
horizonte ao sul, por cima das nuvens.
Após uns quarenta minutos
apreciando o visual iniciei a descida, que seria muito mais longa e demorada do
que a subida. Foram quase 1800 m de desnível até a pequena estação de trem de
Aloasi. Cheguei nesta pequena vila às 15:00. Após curtir os pequenos prazeres
da chegada, Coca-Cola, batata frita e um dedo de prosa com os locais, peguei um
ônibus para Machachi, onde saboreei um frango gigantesco antes de tomar o já
velho conhecido onibusinho colorido para El Chaupi.
Álbum de fotos:
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Vídeo da expedição: |
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