sexta-feira, 25 de março de 2016

Expedição ao Equador – 1ª parte (2011)

Texto por: Marcelo Delvaux

Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.

Nesta expedição ao Equador foram escaladas quatro montanhas em sete dias, todas em solitário: Iliniza Norte (5126 m, 18/01/2011), El Corazón (4791 m, 19/01/2011), Cotopaxi (5897 m, 21/01/2011) e o famigerado Chimborazo (6310 m, 25/01/2011).

Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino". (Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Eu cheguei em Quito no sábado (15/01) à noite, após seis anos de ausência das terras equatorianas. Não sei como consegui ficar tanto tempo sem vir aqui, o Equador é um país incrível, com uma geografia e uma cultura magníficas. A proximidade com a Amazônia e com o Pacífico torna o clima instável e deixa as montanhas, quase sempre, com nuvens e névoas que lhes dão um aspecto misterioso e enigmático. Apesar das menores altitudes, quando comparada com os Andes meridionais, o aspecto físico da região andina no Equador é marcado por uma topografia bastante irregular e pela profusão de formas vulcânicas que compõem o visual peculiar e característico de suas paisagens.


Quito está situada a 2800 m de altitude, em um vale cercado por altas montanhas. De um modo geral, para os padrões das grandes metrópoles latino-americanas, a cidade está muito bem cuidada. Pela opinião dos equatorianos com quem conversei, o governo atual está sendo responsável por importantes avanços no campo social. O que me chamou a atenção, negativamente, foi o trânsito caótico nos dias úteis, muito pior do que da última vez que estive por lá. Pelo menos, nos finais de semana, as ruas ficam bem vazias e tranquilas. Outra novidade para mim foi o novo terminal de ônibus, ultramoderno (e incrivelmente longe do centro), bem diferente do romantismo caótico do terminal anterior.

Mas bacana mesmo é a "invasão" das bicicletas nas manhãs e tardes de domingos, mais uma coisa nova para mim. Diversas ruas e avenidas são fechadas ao trânsito de veículos motorizados, criando corredores de circulação para os ciclistas entre o centro histórico e o centro novo (Mariscal), passando por praças, pontos turísticos e atrativos diversos. Quando a ciclovia, inevitavelmente, cruza com alguma via de carros, guardas uniformizados alternam o fluxo, ora passam as "magrelas", ora os automóveis. Em alguns locais, barracas com água mineral gratuita (vixe, alguém já viu isto no Brasil ?!?!?!). E milhares e milhares de bicicletas, para lá e para cá.

Rumo às montanhas

Após organizar meus equipamentos no domingo (16/01) e comprar os suprimentos necessários, na segunda-feira à tarde parti para o "pueblito" de El Chaupi, pequena vila localizada a cerca de 1 hora de Quito. Tomei um ônibus para Latacunga no novo terminal "Quitumbe" (nada daquela confusão de guichês e pessoas por todos os lados, ninguém mais apregoa destinos e horários tentando capturar seus clientes no grito, agora tem painel eletrônico com chegadas e saídas, todas as empresas e plataformas estão organizadas por região geográfica, cada qual com uma cor distinta, tem trólebus integrado ao terminal, é a modernidade que chegou por lá, ou o sinal dos tempos, não sei) e desci na Panamericana (o caos aqui permanece o mesmo), no trevo de El Chaupi. Alguns minutos de espera e lá vem aquele "onibusinho" colorido, tipicamente andino, que me levaria por meros 30 centavitos até El Chaupi. Como é bom estar de volta aos Andes...

Em El Chaupi me hospedei em um refúgio de montanha chamado Hostal La Llovizna. Eu havia escolhido este hostal, a princípio, por sua localização privilegiada, aos pés de montanhas como os Ilinizas e o El Corazón (além da proximidade com o Parque Nacional Cotopaxi), e pelo preço mais barato para a hospedagem e transporte para as escaladas que eu havia planejado. Eu acrescentaria, depois de ter passado alguns dias lá, a hospitalidade e atenção de seu proprietário, o sr. Bladimir Gallo, de sua família e de seus funcionários. Altamente recomendável, não somente para montanhistas, mas para quem quer fazer trekking, praticar mountain biking ou simplesmente descansar.

A maratona montanhística que viria a seguir só serviu para confirmar algo que eu venho falando sempre para aqueles que me perguntam o que é "alta montanha": esta é uma modalidade específica de montanhismo, com suas técnicas e características peculiares e que requer experiência e habilidades também específicas. Eu destacaria três aspectos importantes que diferenciam as atividades de alta montanha, além da altitude (apesar de existirem ambientes de alta montanha em "baixas" altitudes): imprevisibilidade, mutabilidade e diversidade. A diversidade está por conta dos diferentes tipos de terreno possíveis de se encontrar em uma escalada: rochas, neve, gelo e suas variações e combinações. A mutabilidade está relacionada com as mudanças que a montanha sofre ao longo do tempo e com as diferenças de uma rota em épocas distintas do ano (às vezes de uma semana para outra, ou até mesmo de um dia para o outro). E a imprevisibilidade se dá pela impossibilidade de se conhecer, de antemão, qual configuração, dentre as diversas possibilidades, a rota a ser escalada apresentará. Daí a meu ver a insuficiência da graduação alpina francesa (voltarei a este ponto quando descrever a escalada do Chimborazo).

Iliniza Norte: "El paso de la muerte"


Na terça-feira acordei às 05:00 da manhã, tomei um rápido desjejum e às 05:30 parti em um 4x4 com o sr. Bladimir Gallo com destino a La Virgem, local situado a 3900m e ponto máximo onde chegam os carros. Eram 06:20 quando iniciei minha caminhada solitária em direção ao refúgio dos Ilinizas. Dia amanhecendo, céu limpo, o Cotopaxi majestoso descortinando-se ao fundo, subi tranquilamente em 3 horas, filmando e fotografando, os quase 800 m de desnível até o refúgio Nuevos Horizontes. Nenhuma dificuldade até então, somente quando se chega na "morena" (moraine) o percurso se torna mais duro e íngreme. O refúgio está no alto desta "morena", entre os dois Ilinizas.


A rota propriamente dita inicia-se no refúgio e segue por uma aresta até as proximidades do cume. A princípio, não apresenta maiores dificuldades, estando graduada em 5.3 (II) 70 graus. Ou seja, escalada básica em rocha. O trecho mais difícil, pela descrição da rota, seria o chamado "paso de la muerte", uma travessia exposta no final da aresta. Neste ponto é preciso contornar uma enorme torre de pedra, na verdade um cume secundário, saindo-se da aresta para a face leste da montanha. Faz-se, então, a travessia pelo "paso de la muerte" até se chegar a uma canaleta que dá acesso ao cume principal. Todas as fotos desta travessia que eu obtive na internet apresentavam escaladores encordados, mas não tinha ideia da dificuldade de passar por ali sem corda.

A partir do refúgio eu apertei o passo e me dirigi para a aresta do Iliniza Norte. Entre os dois Ilinizas pude confirmar o que o sr. Bladimir tinha dito: havia muita neve na montanha, o que mudou, drasticamente, as características da rota. Eu havia subido com botas duplas e levado meus crampons na mochila. Por sorte, quando entrei no carro, perguntei ao sr. Bladimir se seria preciso levar o piolet, pois o mesmo me parecia absolutamente desnecessário em uma rota predominantemente de rochas. Acabei voltando no meu quarto e buscando meu piolet de marcha. Sem ele teria sido impossível chegar ao cume.


A rota pela aresta é tranquila, uma sequência de escalaminhadas para vencer os diversos obstáculos rochosos no caminho. Mas é o famoso "não caia", pois a aresta é muito exposta. Apesar da baixa dificuldade técnica, uma queda está fora de cogitação. O que complicava um pouco era a presença de neve e gelo entre as rochas, que as tornavam escorregadias. Subi rapidamente até a torre de pedra, onde um sinal apontava o local onde é preciso se afastar da aresta em direção ao outro lado da montanha. Iniciei o contorno da torre e a face leste começou a se delinear: estava chegando no "paso de la muerte". Mais algumas escaladas expostas e me deparei com uma face coberta com muita neve. Do ponto onde estava era necessário descer pelas rochas e começar uma travessia horizontal: ali era o tal "paso". Mas o "paso de la muerte" foi muito mais fácil do que parecia: havia muitas e excelentes agarras, tornando a travessia bastante segura. Só não dava para cair, pois abaixo a pendente é bastante forte, um penhasco de rochas e neve.

Após o "paso de la muerte" a neve estava bastante dura e parei para calçar os crampons. A rota se tornou mais exigente e, ao mesmo tempo, linda e prazerosa (isto sem falar na vista magnífica!). Após uma longa horizontal pela neve e um desvio pela direita para suavizar a subida, ao invés de uma canaleta dando acesso ao cume principal, como era de se esperar, havia uma rampa bastante forte, com pelo menos 50 graus de inclinação, de neve compacta e dura. Impossível fazer isto sem piolet, ainda bem que levei um na mochila. Troquei os bastões de caminhada pelo piolet e venci aquele trecho com "piolet tração". Sinistro, para uma rota normalmente simples! Graduei a rota na situação que a encontre em PD+.


Cheguei, então, a uns 20 metros do cume, onde mais um setor de rochas me aguardava. Escalada simples, graduada em 5.3 (II). Quando ia partir para a investida final percebi dois grupos descendo por cordas. Aguardei que eles terminassem sua descida e escalei este trecho fácil, mas exposto. Tive que subir com os crampons, pois havia um pouco de neve e gelo entre as pedras.

Alcancei o cume pouco antes do meio-dia, foram umas 5 horas e meia desde La Virgem. O tempo começava a mudar, com muitas nuvens subindo pelos vales e já fechando a vista, que ainda era fantástica, com um mundo de montanhas ao meu redor. Na minha frente estava o Iliniza Sur. Não dava para demorar muito, já começava a ventar. Após as tradicionais lágrimas e fotos comecei a desescalar aquela delicada torre de pedra. Cheguei outra vez na canaleta coberta de neve e, no trecho mais inclinado, encontrei novamente os dois grupos retornando. Seus guias haviam montado uma ancoragem na neve com estacas e estavam descendo as pessoas pela corda de "baldinho". Dei um jeito de descer paralelamente à corda: "piolet escoba" e cramponagem francesa me permitiram vencer aquela forte pendente sem maiores problemas.



Resolvi, então, tomar uma "diretíssima" face leste abaixo, pelo glaciar, ao invés de fazer novamente a travessia e desescalar toda a aresta. Ótima decisão! A qualidade da neve me permitiu descer rapidamente, cramponando à francesa, até chegar nas rochas na base da montanha. Neste ponto, passei um rádio para o sr. Bladimir e lhe indiquei minha posição. Calculamos o horário em que eu deveria chegar a La Virgen, para que ele me buscasse de carro. Após passar por alguns obstáculos rochosos encontrei uma trilha se dirigindo até a "morena". Haviam acabado os perrengues, pelo menos nesta montanha. Cheguei em La Virgen pouco depois das 15:00, com 5 minutos de diferença para o sr. Bladimir. Cálculo perfeito! Escalada perfeita! Dia perfeito! E lá embaixo, no refúgio, um banho quente e uma refeição caprichada me aguardavam...

El Corazón: "La arista maldita"


Eu havia programado para a quarta-feira um dia de descanso, antes de partir para o Cotopaxi. Porém, conversando com o sr. Bladimir sobre o El Corazón, na volta de carro para o refúgio, ele comentou sobre a existência de uma rota, mais próxima a El Chaupi, que levava ao cume pela aresta oeste-leste. Na hora já me surgiu a brilhante ideia de subir o El Corazón por El Chaupi e descer pela rota normal. Seria, na verdade, uma travessia de montanha, subindo por um lado e descendo por outro. Com uma longa caminhada poderia chegar na vila de Aloasi e de lá pegar um ônibus para Machachi e mais outro para regressar ao refúgio em El Chaupi.

Gostei tanto da idéia que não encontrei argumentos que me convencessem a não fazer isto. Afinal, não me sentia suficientemente cansado para um dia de descanso. No dia seguinte, às 07:00 da matina, já estava no carro com o sr. Bladimir subindo por uma longa estradinha de terra em direção à aresta do El Corazón. Após deixar a estrada e me despedir do sr. Bladimir, comecei a galgar algumas cristas na montanha, buscando atingir a linha da aresta que conduzia diretamente ao cume. A vista, para variar, era deslumbrante, com o Cotopaxi a leste e os Ilinizas ao sul.



Cheguei na crista principal de onde avistei, cobertos de nuvens, os profundos abismos andinos que se projetam em direção ao oceano Pacífico. Fantástico! Por que será que nenhum guia de caminhadas (livro) sobre o Equador não inclui uma travessia entre El Chaupi e Aloasi passando pelo cume do El Corazón? A resposta viria em breve, mal sabia eu, vestida de perrengue, e dos bons.

Neste ponto uma trilha bem marcada se dirigia à aresta do El Corazon e já era possível identificar por onde a mesma subia até ganhar a borda rochosa, onde eu deveria buscar meu caminho até o cume. Um forte "acarreo", sem problemas técnicos. A rota normal do El Corazón, a propósito, por onde eu iria descer, é bem tranquila em "condições normais" (lembram-se do que eu falei sobre imprevisibilidade e mutabilidade?). Nestas condições normais pode, sim, ser considerada um trekking de altitude. Mas mesmo esta rota simples tem seus perigos e eu li, recentemente, que um montanhista europeu havia morrido ali descendo em um dia de baixa visibilidade. Afinal, é alta montanha, não se esqueçam disso...


Porém, eu não conhecia nada sobre a aresta que iria subir. A parte final, próxima ao cume, me parecia bem vertical vista de onde eu estava. Certamente envolveria algum tipo de escalada. Comecei a percorrer a aresta sem maiores problemas, a maior dificuldade era a instabilidade provocada pela areia e pedras soltas. Na medida que eu subia, a aresta se tornava mais estreita e íngreme até que surgiram alguns trechos verticais bem expostos. Não havia nenhum lance acima de 2o grau ou 3o grau. No entanto, era tudo instável, não dava para confiar em nenhuma agarra. E, muitas vezes, para se fazer um lance de escalada, era necessário vencer um íngreme "acarreo" que te jogava para baixo. Devo ter xingado meus primeiros palavrões da viagem neste trecho. Foi uma sequência de lances verticais e expostos, onde cada movimento era um susto, com o receio que uma pedra se soltasse e me projetasse para fora da montanha.


Por fim, cheguei a um cume falso. Mais acima estava o cume principal e a aresta havia se transformado em uma trilha íngreme pelo "acarreo". Maldita aresta! Agora entendi porque ninguém propôs uma travessia por ali: imagina escalar esta aresta instável com uma mochila cargueira nas costas! Alcancei o cume principal com pouco mais de duas horas e meia de subida. Já havia subido ali com a Giselle pela rota normal havia seis anos, mas naquela ocasião o tempo estava fechado e não pudemos ter a visão que agora eu contemplava. Dava até para ver o Chimborazo despontando no horizonte ao sul, por cima das nuvens.





Após uns quarenta minutos apreciando o visual iniciei a descida, que seria muito mais longa e demorada do que a subida. Foram quase 1800 m de desnível até a pequena estação de trem de Aloasi. Cheguei nesta pequena vila às 15:00. Após curtir os pequenos prazeres da chegada, Coca-Cola, batata frita e um dedo de prosa com os locais, peguei um ônibus para Machachi, onde saboreei um frango gigantesco antes de tomar o já velho conhecido onibusinho colorido para El Chaupi.

Álbum de fotos:


Vídeo da expedição:

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