sexta-feira, 25 de março de 2016

Subindo um "seis mil" em um feriadão: escalada do Huayna Potosí (2010)


Texto por: Marcelo Delvaux

Relato da escalada realizada em junho de 2010.


 A idéia de subir o Huayna Potosi (6088 m) em um feriado surgiu em tom de brincadeira em uma conversa em uma academia de escalada, logo após a ascensão ao cerro Mercedario, na Argentina. Como eu havia feito o cume desta montanha de 6770 m em apenas quatro dias, alguém comentou que, desse jeito, em breve eu estaria fazendo “seis mil” nos finais de semana. Fim de semana não dá, pensei rindo, mas num feriadão partindo do Brasil até que não seria algo tão impossível. Mentalmente, naquele momento, comecei a esboçar um roteiro para uma hipotética montanha de 6000 m, tendo como referência minha performance no Mercedario: em pouco mais de 48 horas eu havia estabelecido meu acampamento avançado a 5200 m. Isso, teoricamente, me habilitaria a fazer o mesmo em um feriado de quatro dias. Teria mais dois dias para atacar o cume, descer da montanha e pegar o voo de volta. Mas qual montanha seria essa? Teria que ser alguma montanha bem acessível e de fácil logística, pois não teria tempo para grandes deslocamentos.

La Paz me veio, então, imediatamente à cabeça. Situada a 3600 m de altitude, minha aclimatação poderia começar na própria cidade. O Huayna Potosí, com 6088 m, acabou sendo o eleito: além de ser um “seis mil”, tornando o desafio mais emblemático, sua base fica a menos de 2 horas de carro do centro de La Paz. Outra vantagem seria a presença de refúgios nas cotas aproximadas de 4700 m e 5100 m, me poupando o transporte de toda a estrutura de acampamento, o que me permitiria uma rápida retirada da montanha. Afinal de contas, teria que pegar um avião algumas horas após o retorno do ataque ao cume.

As primeiras dificuldades começaram antes mesmo de chegar a La Paz. Cheguei em Santa Cruz de la Sierra por volta de 2 horas da madrugada de uma quinta-feira. No dia seguinte eu teria um voo para La Paz às 14:30 e já estava preparado para evitar o imprevisto acontecido no ano anterior, quando também havia ido à Bolívia. Santa Cruz de la Sierra tem dois aeroportos, um internacional, chamado Viru Viru, e outro doméstico. Em 2009 eu tinha um voo para La Paz marcado para sair de Viru Viru. Quando cheguei neste aeroporto, para minha surpresa, o voo havia sido alterado para o aeroporto doméstico. Por muito pouco não perdi o voo. Desta vez, pensei, não serei surpreendido, e confirmei pela manhã no site da Aerosur que o voo sairia do aeroporto doméstico, mesma informação que constava em minha passagem. Ainda bem que eu cheguei com umas 2 horas de antecedência no aeroporto, pois, além da Aerosur ter, mais uma vez, trocado o local de partida do voo, o mesmo foi antecipado em 1 hora, acreditem se quiser. Novamente, tive que contar com os préstimos de um taxista “voador” para me levar até Viru Viru. Lá chegando, descobri que o voo acabava de ser encerrado. Mostrei, indignado, meu bilhete ao atendente que não teve como negar meu embarque. Mais um obstáculo vencido! Parece piada, mas quase que minha escalada se encerrou em Santa Cruz de la Sierra.

A quinta-feira de Corpus Christi também era feriado na Bolívia. Isso significava que quase tudo estava fechado, inclusive a agência que opera os refúgios no Huayna Potosi. Aproveitei o dia para comprar algumas “cositas” para comer na montanha e dar umas voltas por La Paz. Esta é uma cidade em que eu já me sinto à vontade, depois de vários anos consecutivos de viagens para a Bolívia. E é o tipo de lugar que demonstra, claramente, como a percepção da realidade não é algo direto e objetivo. Para aqueles acostumados, e seduzidos, pelo glamour tecnológico das cidades modernas ocidentais, La Paz deve parecer um lugar insuportável: não identificando os sinais associados à “modernidade” por quem carrega este tipo de “pré-conceito”, a percepção da realidade estará condicionada a enxergar somente sujeira, pobreza e subdesenvolvimento. Não há como negar que a Bolívia é um país pobre. Mas pobre do ponto de vista econômico. Para aqueles que não possuem um olhar limitado por tais condicionamentos, a Bolívia de um modo geral, e La Paz em particular, é um mundo à parte, repleto de surpresas. Passear por La Paz implica no contato com uma cultura diferente, herdeira de tradições ancestrais pré-colombianas cujos sinais estão em todos os lugares, sobrepondo-se aos modismos do mundo moderno. As características físicas da cidade também impressionam. Encaixada em um vale entre o altiplano e a Cordilheira Real, com o imponente Illimani ao fundo, La Paz ganha ares exóticos, principalmente à noite, com milhares e milhares de luzes vindas das montanhas ao redor. Grandes “favelões” diriam, certamente, aqueles que carregam em sua bagagem conceitual os valores urbanísticos supostamente modernos, incapazes de compreender os princípios do relativismo cultural. Um mundo à parte, eu diria, nem melhor ou pior, apenas diferente. À noite no hotel monitorei meu nível de oxigênio, que estava em torno de 92%, com os batimentos cardíacos por volta de 60 por minuto. Fui dormi tranquilo, minhas condições no primeiro dia na altitude estavam excelentes.

Na sexta-feira pela manhã fui até a agência confirmar minha reserva nos refúgios do Huayna Potosí e me disseram que, dentro de uma hora, havia um carro indo para o refúgio do Paso Zongo e que poderiam me levar, caso eu já estivesse pronto. Estava quase pronto, respondi, mas ainda tinha uma coisa importante para fazer. Porém, uma hora seria o suficiente para mim. E o que eu tinha de tão importante assim? Comprar alguns discos do Savia Andina, meu grupo boliviano favorito. Corri para as lojas que eu conheço em La Paz, adquiri mais três preciosos discos para minha coleção de música andina, busquei minha mochila no hotel e partimos para o Huayna Potosí. E o que ouvíamos no carro quando a Cordillera Real se apresentava em todo seu esplendor, à medida que subíamos em direção ao município de El Alto? Errou quem pensou em música andina. Enquanto eu olhava para o Illimani, imponente, quase tocando aquele céu azul e sem nuvens, o lendário disco de Miles Davis e John Coltrane, Kind of Blue, soava mais exótico do que a vista de La Paz no fundo do vale, um som noturno tentando se enquadrar na claridade etérea e límpida daquelas montanhas.

El Alto é, praticamente, um bairro elevado de La Paz, encaixado na borda do altiplano boliviano. Atravessamos um verdadeiro labirinto de ruas e avenidas que me faz lembrar os subúrbios de Kathmandu. O altiplano, no entanto, é uma região extremamente seca, mais parecida com o platô tibetano do que com os férteis vales nepaleses. Pegamos a estrada que vai ao Chacaltaya, que já foi a estação de esqui mais alta do mundo, antes de seu glaciar ser extinto com o aquecimento global, até uma bifurcação, onde havia uma van nos esperando com um grupo que também iria subir a montanha, um casal de ingleses, um italiano, um francês, outra inglesa e três guias. A estrada à esquerda conduzia até o Paso Zongo e, ao fundo, pude ter a primeira visão da face leste do Huayna Potosí, onde fica a rota normal. O dia continuava ensolarado, mas já se podiam perceber algumas nuvens aproximando-se do cume. Após uma rápida parada, rumamos para o refúgio. Lá chegando tive duas surpresas: a primeira era a excelente qualidade daquela construção, um luxo para um “seis mil” que dispunha até de chuveiro com água quente. A outra surpresa não era assim tão agradável: o tempo começou a fechar rapidamente, mal deu tempo de observar a rota até o cume, que se encontrava muito bem marcada, e tirar algumas fotos.


Coloquei minhas coisas em um dos quartos do refúgio e o resto do dia transcorreu sem nenhuma novidade: com o “conforto” daquele lugar não havia muito o que fazer e passei o tempo lendo. Nem comida eu teria que preparar, pois a diária incluía as refeições. Só o clima é que me despertava a atenção. O céu azul deu lugar a um branco total que engoliu não apenas a montanha, mas até a represa localizada a poucos metros da janela de onde eu observava os primeiros flocos de neve cair. Como meu cronograma de subida não tinha nenhuma margem para imprevistos, a situação era preocupante. Mais preocupante porque aquilo se enquadrava com a previsão do tempo que eu havia consultado na véspera. À noite, como de praxe, consultei meu oxigênio e havia caído para uns 86%, com os batimentos tendo aumentado para 70 por minuto. Considerando-se que estava a mais de 4700 m e que havia chegado a La Paz a cerca de 30 horas, estava muito bom e fui dormir confiante na melhora do clima. Mas, estranhamente, não estava conseguindo pegar no sono, havia alguma coisa me incomodando. Custei a notar que estava com calor! Havia levado meu saco de dormir de alta montanha e já estava suando naquele invólucro apropriado para temperaturas inferiores a -20º C. Saí do saco de dormir e percebi que a temperatura no refúgio estava amena e agradável. Aí, sim, o sono veio pesado. Quase perco a noite por excesso de conforto...

No dia seguinte, após acordar e levantar-me por volta das 08:30, a primeira coisa que fiz foi olhar pela janela e ver como estava o tempo: totalmente fechado! Pelo menos não estava nevando. Tomei meu café da manhã, deixei minha mochila preparada e programei minha partida para o refúgio superior para o meio-dia. Foram mais algumas horas de ócio total, alternando leituras e conversas. No dia anterior me disseram que a rota não estava muito segura, pois havia muitas gretas. Um dos guias do grupo que iria subir nesse mesmo dia tentou me persuadir para que eu me juntasse a eles. Procurei me informar sobre as gretas e ele disse que estavam abertas e, caso não nevasse muito, provavelmente continuariam assim. Menos mal, pensei, e recusei a oferta agradecendo sua preocupação. Mantive minha ideia de subir sozinho, pois meu objetivo era treinar e não somente chegar ao cume. Somente tive que adiar minha partida para o refúgio superior para as 14:00, pois o grupo subiria neste horário e os guias estavam com a chave do lugar.



Após almoçarmos o grupo terminou os últimos preparativos e subimos todos: eu, os três guias e seus cinco clientes. Foi só colocar o pé para fora que começou a nevar. A trilha que parte do Paso Zongo começa suave, seguindo uma tubulação de água. Aos poucos a inclinação vai aumentando, tornando a subida um pouco mais forte, apesar de ser facilitada pela trilha bem marcada. Subimos em ritmo tranquilo e, mesmo tendo economizado no peso, sentia que minha mochila não estava tão leve assim. Na parte alta da montanha existem dois refúgios: o primeiro é uma grande construção de pedra situada na cota dos 5100 m; o outro, para onde nos dirigíamos, era bem menor e ficava uns 150 m acima, à esquerda da rota normal. Gastamos cerca de duas horas para chegarmos até o primeiro refúgio.

O caminho para o refúgio superior começa em uma encosta rochosa com uma forte inclinação que, com a neve recente, se mostrava bastante traiçoeira: havia um gelo duro e bastante escorregadio entre as rochas, coberto com uma fina camada de neve. Confesso que deu vontade de colocar os crampons, estava difícil de manter o equilíbrio com o peso da mochila. Os bastões de caminhada perderam sua funcionalidade, pois não penetravam no gelo duro. O jeito foi usar as mãos como um apoio nas rochas laterais e subir lentamente, com todo o cuidado, pois uma queda ali poderia machucar muito. Depois deste trecho inicial, saímos da trilha principal e tomamos um caminho rochoso à esquerda, que leva até o outro refúgio. Mais alguns lances de “escalaminhadas” em um aclive pesado e chegamos lá. Observei a rota normal para o cume bem mais à direita do refúgio e perguntei a um dos guias se era necessário descer de novo para chegar até ela. Ele me respondeu que não, que atrás do refúgio havia outra rota que se encontrava com a normal mais acima. Olhei para a direção apontada por ele e percebi que ali havia bastante gelo e muitas gretas, em um visível contraste com o caminho bem batido da rota normal, com uma neve aparentemente compactada e de fácil trânsito.


Chegamos ao refúgio por volta das 17:00 e, surpreendentemente, o céu começou a abrir. Pude, então, desfrutar da vista da Cordillera Real acima das nuvens, com o Illimani ao fundo. A temperatura começou a baixar e, após algumas fotos, entrei para preparar minha mochila e comer alguma coisa. As refeições estariam incluídas nas diárias dos dois refúgios e fui ver o que os guias estavam cozinhando para seus clientes: sopa. Ainda bem que, por precaução, eu havia trazido comida liofilizada. Tomei um prato de sopa junto com os demais e fui esquentar água para preparar um macarrão, aquela sopa era incompatível com o tamanho de meu apetite na montanha. Comi uma porção caprichada de macarrão com molho branco e frango sob os olhares curiosos de meus companheiros “acidentais” que, certamente, pensavam de onde vinha tanta fome. Mas a curiosidade aumentou ainda mais quando fui medir meu nível de oxigênio: havia voltado para 92%, com os batimentos na faixa de 60 por minuto, excelente! O oxímetro, rapidamente, virou o brinquedinho de final de dia nas mãos de todos, já que ninguém conhecia aquela coisa. Antes de deitar ouvi os guias combinando o horário para o ataque ao cume: acordar 01:00 para sair às 02:00. Eu estava pensando em sair uma hora depois, mas teria que me ajustar a este horário, pois naquele refúgio minúsculo, onde todos dormiam no mesmo compartimento, depois que o primeiro se levantasse todos acordariam.



 Meu “relógio biológico” acabou me despertando 5 minutos antes da hora. Desliguei o alarme e comecei a me preparar mentalmente para o que viria a seguir. Pouco depois alguns “bipes” anunciaram a todos que já era hora de levantar. Comecei a me vestir, preparei meu café da manhã e fui terminando os preparativos naquele cubículo, onde 9 pessoas tentavam, ao mesmo tempo, se ajeitar. Até que os preparativos foram rápidos e a primeira cordada saiu pouco depois de 01:30.

Esperei que todos saíssem e, por fim, comecei a subir antes das 02:00. Em menos de 40 minutos já havia ultrapassado as 3 cordadas e segui firme para cima, me sentia incrivelmente forte e bem disposto. No caminho fui passando por outros grupos até que não enxerguei mais nenhuma luz acima de mim. Percebi que uma das cordadas que saíram do refúgio um pouco antes também estava apertando o passo e se encontrava apenas algumas dezenas de metros mais abaixo. Após vencer um trecho bem íngreme com muito gelo, onde foi necessário sacar a piqueta técnica da mochila, cheguei na aresta que dá acesso ao cume. Só então me dei conta que já estava na parte final da escalada e ainda eram 05:00.

Estava tão motivado e subi tão rápido que acabei chegando no cume ainda de noite, antes das 06:00, seguido pelo outro grupo que também subia em ritmo forte. Chegaram no cume uns 15 minutos depois, sob protesto dos clientes, acho que o guia acelerou propositalmente para me alcançar. Minha ideia era ficar ali até amanhecer, mas, logo depois da chegada da outra cordada, uma espessa neblina envolveu o cume e começou a nevar levemente. O guia me disse que desceria com seus clientes e resolvi descer junto. Já me sentia bastante satisfeito e não queria arriscar mais. Quando chegamos na base da aresta, encontramos com os demais grupos que vinham subindo em um passo “normal”. Nesse momento, começou a amanhecer e a neblina se dispersou, junto com a nevasca. Se tivesse aguardado um pouco mais, pensei, poderia ter visto o amanhecer do cume. Mas não podia reclamar, o desafio estava quase concluído e só me restava regressar até a base, tomar um carro para La Paz, preparar minha bagagem e pegar o voo de volta a Santa Cruz de la Serra, que partiria no final da tarde. Havia conseguido escalar uma montanha acima de 6000 m de altitude em um feriado, saindo e regressando ao Brasil em 4 dias e sem aclimatação prévia!


Álbum de fotos:
Escalando um "seis mil" em um feriado: Huayna Potosí (6088 m) 2010

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