Texto por: Marcelo Delvaux
Relato da escalada realizada em junho de 2010.
Relato da escalada realizada em junho de 2010.
La Paz me veio, então,
imediatamente à cabeça. Situada a 3600 m de altitude, minha aclimatação poderia
começar na própria cidade. O Huayna Potosí, com 6088 m, acabou sendo o eleito: além
de ser um “seis mil”, tornando o desafio mais emblemático, sua base fica a
menos de 2 horas de carro do centro de La Paz. Outra vantagem seria a presença
de refúgios nas cotas aproximadas de 4700 m e 5100 m, me poupando o transporte
de toda a estrutura de acampamento, o que me permitiria uma rápida retirada da
montanha. Afinal de contas, teria que pegar um avião algumas horas após o
retorno do ataque ao cume.
As primeiras dificuldades
começaram antes mesmo de chegar a La Paz. Cheguei em Santa Cruz de la Sierra
por volta de 2 horas da madrugada de uma quinta-feira. No dia seguinte eu teria
um voo para La Paz às 14:30 e já estava preparado para evitar o imprevisto
acontecido no ano anterior, quando também havia ido à Bolívia. Santa Cruz de la
Sierra tem dois aeroportos, um internacional, chamado Viru Viru, e outro
doméstico. Em 2009 eu tinha um voo para La Paz marcado para sair de Viru Viru.
Quando cheguei neste aeroporto, para minha surpresa, o voo havia sido alterado
para o aeroporto doméstico. Por muito pouco não perdi o voo. Desta vez, pensei,
não serei surpreendido, e confirmei pela manhã no site da Aerosur que o voo
sairia do aeroporto doméstico, mesma informação que constava em minha passagem.
Ainda bem que eu cheguei com umas 2 horas de antecedência no aeroporto, pois,
além da Aerosur ter, mais uma vez, trocado o local de partida do voo, o mesmo
foi antecipado em 1 hora, acreditem se quiser. Novamente, tive que contar com
os préstimos de um taxista “voador” para me levar até Viru Viru. Lá chegando,
descobri que o voo acabava de ser encerrado. Mostrei, indignado, meu bilhete ao
atendente que não teve como negar meu embarque. Mais um obstáculo vencido! Parece
piada, mas quase que minha escalada se encerrou em Santa Cruz de la Sierra.
A quinta-feira de Corpus Christi
também era feriado na Bolívia. Isso significava que quase tudo estava fechado,
inclusive a agência que opera os refúgios no Huayna Potosi. Aproveitei o dia
para comprar algumas “cositas” para comer na montanha e dar umas voltas por La
Paz. Esta é uma cidade em que eu já me sinto à vontade, depois de vários anos
consecutivos de viagens para a Bolívia. E é o tipo de lugar que demonstra,
claramente, como a percepção da realidade não é algo direto e objetivo. Para
aqueles acostumados, e seduzidos, pelo glamour tecnológico das cidades modernas
ocidentais, La Paz deve parecer um lugar insuportável: não identificando os
sinais associados à “modernidade” por quem carrega este tipo de “pré-conceito”,
a percepção da realidade estará condicionada a enxergar somente sujeira,
pobreza e subdesenvolvimento. Não há como negar que a Bolívia é um país pobre.
Mas pobre do ponto de vista econômico. Para aqueles que não possuem um olhar limitado
por tais condicionamentos, a Bolívia de um modo geral, e La Paz em particular,
é um mundo à parte, repleto de surpresas. Passear por La Paz implica no contato
com uma cultura diferente, herdeira de tradições ancestrais pré-colombianas
cujos sinais estão em todos os lugares, sobrepondo-se aos modismos do mundo
moderno. As características físicas da cidade também impressionam. Encaixada em
um vale entre o altiplano e a Cordilheira Real, com o imponente Illimani ao
fundo, La Paz ganha ares exóticos, principalmente à noite, com milhares e
milhares de luzes vindas das montanhas ao redor. Grandes “favelões” diriam,
certamente, aqueles que carregam em sua bagagem conceitual os valores
urbanísticos supostamente modernos, incapazes de compreender os princípios do
relativismo cultural. Um mundo à parte, eu diria, nem melhor ou pior, apenas
diferente. À noite no hotel monitorei meu nível de oxigênio, que estava em
torno de 92%, com os batimentos cardíacos por volta de 60 por minuto. Fui dormi
tranquilo, minhas condições no primeiro dia na altitude estavam excelentes.
Na sexta-feira pela manhã fui até
a agência confirmar minha reserva nos refúgios do Huayna Potosí e me disseram
que, dentro de uma hora, havia um carro indo para o refúgio do Paso Zongo e que
poderiam me levar, caso eu já estivesse pronto. Estava quase pronto, respondi, mas
ainda tinha uma coisa importante para fazer. Porém, uma hora seria o suficiente
para mim. E o que eu tinha de tão importante assim? Comprar alguns discos do
Savia Andina, meu grupo boliviano favorito. Corri para as lojas que eu conheço
em La Paz, adquiri mais três preciosos discos para minha coleção de música
andina, busquei minha mochila no hotel e partimos para o Huayna Potosí. E o que
ouvíamos no carro quando a Cordillera Real se apresentava em todo seu
esplendor, à medida que subíamos em direção ao município de El Alto? Errou quem
pensou em música andina. Enquanto eu olhava para o Illimani, imponente, quase
tocando aquele céu azul e sem nuvens, o lendário disco de Miles Davis e John
Coltrane, Kind of Blue, soava mais exótico do que a vista de La Paz no fundo do
vale, um som noturno tentando se enquadrar na claridade etérea e límpida
daquelas montanhas.
El Alto é, praticamente, um bairro
elevado de La Paz, encaixado na borda do altiplano boliviano. Atravessamos um
verdadeiro labirinto de ruas e avenidas que me faz lembrar os subúrbios de
Kathmandu. O altiplano, no entanto, é uma região extremamente seca, mais
parecida com o platô tibetano do que com os férteis vales nepaleses. Pegamos a
estrada que vai ao Chacaltaya, que já foi a estação de esqui mais alta do
mundo, antes de seu glaciar ser extinto com o aquecimento global, até uma
bifurcação, onde havia uma van nos esperando com um grupo que também iria subir
a montanha, um casal de ingleses, um italiano, um francês, outra inglesa e três
guias. A estrada à esquerda conduzia até o Paso Zongo e, ao fundo, pude ter a
primeira visão da face leste do Huayna Potosí, onde fica a rota normal. O dia
continuava ensolarado, mas já se podiam perceber algumas nuvens aproximando-se
do cume. Após uma rápida parada, rumamos para o refúgio. Lá chegando tive duas
surpresas: a primeira era a excelente qualidade daquela construção, um luxo
para um “seis mil” que dispunha até de chuveiro com água quente. A outra
surpresa não era assim tão agradável: o tempo começou a fechar rapidamente, mal
deu tempo de observar a rota até o cume, que se encontrava muito bem marcada, e
tirar algumas fotos.
Coloquei minhas coisas em um dos
quartos do refúgio e o resto do dia transcorreu sem nenhuma novidade: com o
“conforto” daquele lugar não havia muito o que fazer e passei o tempo lendo.
Nem comida eu teria que preparar, pois a diária incluía as refeições. Só o
clima é que me despertava a atenção. O céu azul deu lugar a um branco total que
engoliu não apenas a montanha, mas até a represa localizada a poucos metros da
janela de onde eu observava os primeiros flocos de neve cair. Como meu
cronograma de subida não tinha nenhuma margem para imprevistos, a situação era
preocupante. Mais preocupante porque aquilo se enquadrava com a previsão do
tempo que eu havia consultado na véspera. À noite, como de praxe, consultei meu
oxigênio e havia caído para uns 86%, com os batimentos tendo aumentado para 70
por minuto. Considerando-se que estava a mais de 4700 m e que havia chegado a
La Paz a cerca de 30 horas, estava muito bom e fui dormir confiante na melhora
do clima. Mas, estranhamente, não estava conseguindo pegar no sono, havia
alguma coisa me incomodando. Custei a notar que estava com calor! Havia levado
meu saco de dormir de alta montanha e já estava suando naquele invólucro
apropriado para temperaturas inferiores a -20º C. Saí do saco de dormir e
percebi que a temperatura no refúgio estava amena e agradável. Aí, sim, o sono
veio pesado. Quase perco a noite por excesso de conforto...
No dia seguinte, após acordar e
levantar-me por volta das 08:30, a primeira coisa que fiz foi olhar pela janela
e ver como estava o tempo: totalmente fechado! Pelo menos não estava nevando.
Tomei meu café da manhã, deixei minha mochila preparada e programei minha
partida para o refúgio superior para o meio-dia. Foram mais algumas horas de
ócio total, alternando leituras e conversas. No dia anterior me disseram que a
rota não estava muito segura, pois havia muitas gretas. Um dos guias do grupo
que iria subir nesse mesmo dia tentou me persuadir para que eu me juntasse a
eles. Procurei me informar sobre as gretas e ele disse que estavam abertas e,
caso não nevasse muito, provavelmente continuariam assim. Menos mal, pensei, e
recusei a oferta agradecendo sua preocupação. Mantive minha ideia de subir
sozinho, pois meu objetivo era treinar e não somente chegar ao cume. Somente
tive que adiar minha partida para o refúgio superior para as 14:00, pois o
grupo subiria neste horário e os guias estavam com a chave do lugar.
Após almoçarmos o grupo terminou
os últimos preparativos e subimos todos: eu, os três guias e seus cinco
clientes. Foi só colocar o pé para fora que começou a nevar. A trilha que parte
do Paso Zongo começa suave, seguindo uma tubulação de água. Aos poucos a
inclinação vai aumentando, tornando a subida um pouco mais forte, apesar de ser
facilitada pela trilha bem marcada. Subimos em ritmo tranquilo e, mesmo tendo
economizado no peso, sentia que minha mochila não estava tão leve assim. Na
parte alta da montanha existem dois refúgios: o primeiro é uma grande construção
de pedra situada na cota dos 5100 m; o outro, para onde nos dirigíamos, era bem
menor e ficava uns 150 m acima, à esquerda da rota normal. Gastamos cerca de
duas horas para chegarmos até o primeiro refúgio.
O caminho para o refúgio superior
começa em uma encosta rochosa com uma forte inclinação que, com a neve recente,
se mostrava bastante traiçoeira: havia um gelo duro e bastante escorregadio
entre as rochas, coberto com uma fina camada de neve. Confesso que deu vontade
de colocar os crampons, estava difícil de manter o equilíbrio com o peso da
mochila. Os bastões de caminhada perderam sua funcionalidade, pois não
penetravam no gelo duro. O jeito foi usar as mãos como um apoio nas rochas
laterais e subir lentamente, com todo o cuidado, pois uma queda ali poderia
machucar muito. Depois deste trecho inicial, saímos da trilha principal e
tomamos um caminho rochoso à esquerda, que leva até o outro refúgio. Mais
alguns lances de “escalaminhadas” em um aclive pesado e chegamos lá. Observei a
rota normal para o cume bem mais à direita do refúgio e perguntei a um dos
guias se era necessário descer de novo para chegar até ela. Ele me respondeu
que não, que atrás do refúgio havia outra rota que se encontrava com a normal
mais acima. Olhei para a direção apontada por ele e percebi que ali havia
bastante gelo e muitas gretas, em um visível contraste com o caminho bem batido
da rota normal, com uma neve aparentemente compactada e de fácil trânsito.
Chegamos ao refúgio por volta das
17:00 e, surpreendentemente, o céu começou a abrir. Pude, então, desfrutar da
vista da Cordillera Real acima das nuvens, com o Illimani ao fundo. A
temperatura começou a baixar e, após algumas fotos, entrei para preparar minha
mochila e comer alguma coisa. As refeições estariam incluídas nas diárias dos
dois refúgios e fui ver o que os guias estavam cozinhando para seus clientes:
sopa. Ainda bem que, por precaução, eu havia trazido comida liofilizada. Tomei
um prato de sopa junto com os demais e fui esquentar água para preparar um
macarrão, aquela sopa era incompatível com o tamanho de meu apetite na
montanha. Comi uma porção caprichada de macarrão com molho branco e frango sob
os olhares curiosos de meus companheiros “acidentais” que, certamente, pensavam
de onde vinha tanta fome. Mas a curiosidade aumentou ainda mais quando fui
medir meu nível de oxigênio: havia voltado para 92%, com os batimentos na faixa
de 60 por minuto, excelente! O oxímetro, rapidamente, virou o brinquedinho de
final de dia nas mãos de todos, já que ninguém conhecia aquela coisa. Antes de
deitar ouvi os guias combinando o horário para o ataque ao cume: acordar 01:00
para sair às 02:00. Eu estava pensando em sair uma hora depois, mas teria que
me ajustar a este horário, pois naquele refúgio minúsculo, onde todos dormiam
no mesmo compartimento, depois que o primeiro se levantasse todos acordariam.
Esperei que todos saíssem e, por
fim, comecei a subir antes das 02:00. Em menos de 40 minutos já havia
ultrapassado as 3 cordadas e segui firme para cima, me sentia incrivelmente
forte e bem disposto. No caminho fui passando por outros grupos até que não
enxerguei mais nenhuma luz acima de mim. Percebi que uma das cordadas que saíram
do refúgio um pouco antes também estava apertando o passo e se encontrava
apenas algumas dezenas de metros mais abaixo. Após vencer um trecho bem íngreme
com muito gelo, onde foi necessário sacar a piqueta técnica da mochila, cheguei
na aresta que dá acesso ao cume. Só então me dei conta que já estava na parte
final da escalada e ainda eram 05:00.
Estava tão motivado e subi tão
rápido que acabei chegando no cume ainda de noite, antes das 06:00, seguido pelo
outro grupo que também subia em ritmo forte. Chegaram no cume uns 15 minutos
depois, sob protesto dos clientes, acho que o guia acelerou propositalmente para
me alcançar. Minha ideia era ficar ali até amanhecer, mas, logo depois da
chegada da outra cordada, uma espessa neblina envolveu o cume e começou a nevar
levemente. O guia me disse que desceria com seus clientes e resolvi descer
junto. Já me sentia bastante satisfeito e não queria arriscar mais. Quando
chegamos na base da aresta, encontramos com os demais grupos que vinham subindo
em um passo “normal”. Nesse momento, começou a amanhecer e a neblina se dispersou,
junto com a nevasca. Se tivesse aguardado um pouco mais, pensei, poderia ter
visto o amanhecer do cume. Mas não podia reclamar, o desafio estava quase concluído
e só me restava regressar até a base, tomar um carro para La Paz, preparar
minha bagagem e pegar o voo de volta a Santa Cruz de la Serra, que partiria no
final da tarde. Havia conseguido escalar uma montanha acima de 6000 m de
altitude em um feriado, saindo e regressando ao Brasil em 4 dias e sem
aclimatação prévia!
Álbum de fotos:
Escalando um "seis mil" em um feriado: Huayna Potosí (6088 m) 2010 |
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