Texto por: Marcelo Delvaux
Relato da ascensão realizada em janeiro de 2013.
O Marmolejo é o “seis mil” mais austral dos Andes, ou
seja, é a última montanha que ultrapassa essa altitude no sul do continente. É
carinhosamente apelidada de “Muy muy lejos” pelos montanhistas , devido à longa
e exaustiva aproximação necessária para se chegar à sua base. As rotas mais utilizadas para a
ascensão dessa montanha estão do lado chileno, havendo duas possibilidades de
acesso que convergem na rota normal: pelo vale do Río del Plomo ou pelo vale do
Estero Marmolejo, no Cajón del Maipo. Eu escolhi esta última opção pela maior
facilidade logística, já que existe transporte público desde Santiago até as
águas termais conhecidas como Baños Morales, que ficam nas proximidades do
refúgio Los Valdés, um excelente ponto de apoio para o início da empreitada.
A
aproximação pelo Estero Marmolejo é a mais longa dessas duas alternativas e
bastante exigente fisicamente, principalmente se o trajeto até o acampamento
base for feito sem a utilização de mulas. Ambas as rotas se encontram em um
passo localizado a 4243 m de altitude, que separa os dois vales, e seguem por
uma aresta na direção leste que leva diretamente ao glaciar abaixo do cume. Eu
optei por ir sem mulas, tanto pelo preço abusivo cobrado, quanto pela
possibilidade de agregar um elemento extra ao desafio proposto de executar essa
ascensão no estilo “alpino”, ou seja, montando sucessivos acampamentos sem
realizar “porteos” prévios de equipamentos e suprimentos.
O Marmolejo é uma montanha
tecnicamente fácil: eu subi até o cume somente com botas duplas e um par de
bastões, servindo o piolet e os crampons apenas como peso extra na minha
mochila. Mas seu glaciar é bastante perigoso, a despeito das informações
contrárias que encontrei em muitas referências na internet, que diziam que o
mesmo não continha gretas. Na verdade, o glaciar da face oeste, no lado
chileno, encontra-se em nítida regressão, certamente um efeito do aquecimento
global, apresentando uma neve instável e quebradiça com muitos penitentes e
gretas em formação, sendo preciso bastante cuidado ao atravessá-lo sem corda. Mas,
mesmo com as condições atuais do glaciar, o Marmolejo é uma montanha linda e
pouco visitada, apesar de se encontrar nas proximidades de Santiago, sendo uma
excelente alternativa para quem busca uma ascensão em uma área inóspita e sem a
presença de multidões. Também constitui um grande desafio físico, sendo
utilizada pelos chilenos no inverno como preparação para suas expedições ao
Himalaia.
Aproximação “Muy
muy lejos”
Eu estava
planejando seguir de ônibus para Baños Morales, mas como minha ida coincidiu
com o final de semana, combinei com o Alexandre, um amigo meu que mora em
Santiago, de irmos juntos para aproveitarmos o sábado no Cajón del Maipo. O
tempo estava bom e aparentemente estável, ensolarado e com um céu sem nuvens,
apesar da previsão de nevascas na montanha para os próximos dias. À noite, no
refúgio Los Valdés, o vento aumentou de intensidade, contrastando com a
limpidez estrelada do famoso céu do Cajón.
No domingo pela manhã o Alexandre
me levou de 4x4 até o “cabrerío”, um local de criação de cabras situado a cerca
de 2200 m de altitude e a uns 5 km do refúgio, ponto de partida para a ascensão
do Marmolejo e do vulcão San José. O tempo continuava bom, com um pouco de
vento e, às 09:00, me despedi de meu amigo, coloquei a mochila nas costas e
busquei o caminho por uma trilha que sobe uma encosta em direção ao vale de La
Engorda, uma extensa planície verdejante cortada pelo Estero Marmolejo, cuja
travessia constituía o principal obstáculo do dia, além dos 1400 m de desnível
a ser vencido.
Logo nos primeiros minutos de
caminhada a paisagem se mostrava deslumbrante, com a visão do Cerro Morado
(4647 m) surgindo à esquerda, no final do vale do Estero Morado e, a oeste, as
ladeiras nevadas do vulcão San José (5856 m), cujo cume norte é vizinho ao
maciço do Marmolejo. Depois de aproximadamente 2 horas, após cruzar alguns
pequenos afluentes, cheguei ao Estero Marmolejo que, na parte da manhã, ainda
se encontrava com um baixo volume de água, dividindo-se em vários canais no
ponto em que o Cajón de La Engorda se dirige para o sudeste, separando-se do
vale principal. Mesmo assim foi preciso tirar as botas e calçar um par de
“crocs” para fazer a travessia, tomando muito cuidado com a força da
correnteza. Desse ponto em diante a paisagem começa a mudar. O deslocamento,
que já era um pouco incômodo devido às muitas pedras existentes no caminho,
passa a ser, prioritariamente, por trechos pedregosos e instáveis retardando o
ritmo, com o vale se tornando mais estreito e as subidas mais íngremes e
fortes. Após passar por uma grande rocha com uma cruz e algumas inscrições o
caminho se torna realmente mais exigente e começa-se a ganhar altura com maior
rapidez. Nesse ponto a trilha se afasta do rio, apesar de se manter paralela a
ele, mas bem acima de seu nível. Ou seja, é a última oportunidade de se
reabastecer de água antes de atingir o local conhecido como Aguas Blancas.
Quando eu estava deixando o verde
do Cajón de La Engorda observei que o vale do Estero Marmolejo terminava em uma
cachoeira, logo acima da pedra com a cruz. Seria esse o fim do vale? Estranho,
porque sabia que a aproximação pelo vale era bastante longa. Ao subir esse
trecho descobri que o vale, na verdade, possuía vários “níveis”, abrindo-se
novamente acima do trecho encachoeirado. Devo ter gasto mais umas duas horas
para chegar às Aguas Blancas, que marca o fim deste outro patamar. Esse é um
local bastante interessante, marcado pelo encontro do Estero Marmolejo de águas
esbranquiçadas, devido à quantidade de sedimentos que carrega, com outro curso
de água mais pura e azulada, que surge repentinamente por debaixo de umas
rochas, uma versão em miniatura do famoso encontro das águas amazônicas dos
rios Negro e Solimões. Observando esse segundo córrego mais de perto, fiquei na
dúvida se se tratava de uma nova nascente, como estava na carta topográfica, ou
se era o próprio Estero Marmolejo que se bifurcava e corria por debaixo das
pedras, tendo seus sedimentos purificados pelo filtro natural formado pelas rochas.
Aproveitei para me reabastecer de
água naquele riacho cristalino e encarei a nova e forte subida que se
anunciava, e que me levou para o terceiro “nível” do vale, o último e mais
longo de todos. Ao fundo, dois detalhes preocupantes: um circo de montanhas que
não deixava entrever nenhum passo natural por onde subir e uma espessa camada
de nuvens encobrindo esses cumes elevados, mostrando que o clima lá encima não
estava nada bom. O vento também já era mais forte e o céu ficava cada vez mais
escuro. Eu tinha a meta de chegar ao fundo do vale, onde fica o acampamento
base, aproveitando-me do fato de que a luz do dia, nessa época do ano,
prolonga-se até umas 21:30. Mas com o tempo ficando cada vez mais feio, achei
melhor parar no lugar mais adequado que encontrasse.
Pouco antes das 18:00 a trilha se
reaproximou do Estero Marmolejo, em um ponto onde o vale é bem extenso e o rio
se desdobra em vários canais. Para cruzar alguns desses canais seria preciso
tirar a bota e resolvi, então, montar a barraca em sua margem, em um lugar
utilizado como acampamento intermediário pelos vestígios de pedras empilhadas
ali existentes. Certamente seria mais fácil atravessar o rio pela manhã, pois o
volume de água aumenta progressivamente durante o dia com o calor que provoca o
degelo no alto da montanha, de onde vem toda essa água. Foi uma decisão
acertada, pois cerca de uma hora e meia depois começou a chover. Havia sido um
dia bem pesado, carregando todo o peso pelo vale desde o “cabrerío”. Eu estava
a 3300 m de altitude e havia subido uns 1100 m. Dormi tranquilo ouvindo os
pingos da chuva no teto da barraca.
O dia seguinte amanheceu tão feio
como o final da tarde anterior, com as nuvens mais baixas e ameaçadoras. Antes
das 09:00 já estava com a mochila nas costas e com os “crocs” nos pés, para
atravessar novamente o Estero Marmolejo que, a essa hora, estava bem mais
tranquilo. Somente um dos canais apresentava um volume de água maior, me
fazendo molhar os pés. Após essa travessia, o caminho se afasta novamente do
Estero Marmolejo e segue paralelo a um grande depósito de sedimentos, junto a
um pequeno córrego. A orientação é visual, mirando-se o fundo do vale e
buscando os pequenos totens que indicam o melhor caminho entre as pedras. Duas
horas depois observei um totem imenso no alto desse depósito de sedimentos,
indício de que estava chegando a algum lugar. O acampamento base surgiu em
seguida, com uma ampla área plana em meio aos escombros.
Eu continuava sem saber por onde
deveria subir, no fundo do vale, em direção à aresta que me conduziria para o
glaciar do Marmolejo. As nuvens espessas realçavam, ainda mais, a verticalidade
daquelas paredes, formadas por grandes montanhas como o Cerro Loma Larga (5404
m) e o Cerro Cortaderas (5197 m). Continuei caminhando seguindo os totens,
agora longe de qualquer curso de água e cercado por pedras desmoronadas. Uma
hora mais e cheguei a outra área plana com sinais de ser utilizada,
frequentemente, como acampamento. Estranho, porque, apesar de ser bem abrigado
e limpo, não vi água em nenhum lugar. Nesse ponto saquei a mochila e fui buscar
o caminho, pois desconfiava que estava me aproximando da tão esperada subida
que me tiraria do vale do Estero Marmolejo. Finalmente localizei dois totens apontando
em direção a uma grande pedra, mais acima. Olhando para o alto e percebi uma
aresta bastante aérea e exposta, que supostamente me conduziria até o passo,
nesse momento escondido pelas nuvens escuras que tomaram conta daquelas
paragens. Eu estava saindo do acampamento base de um “seis mil”, mas até agora
não tinha visto nem sinal da montanha que iria escalar. Apenas podia pressentir
que havia um gigante à espreita.
Álbum de fotos:
Expedição ao Marmolejo (6108 m) 2013 |
A paz dessas fotos me deixa totalmente ansioso para começar essas jornadas. Estou gostando bastante dos relatos. E as fotos matam as curiosidades. Obrigado
ResponderExcluirEu é que agradeço, um abraço!
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