Texto por: Marcelo Delvaux
Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.
Expedição aos Andes equatorianos, quinta etapa do projeto Sete Picos Andinos.
Nesta do Equador foram escaladas
quatro montanhas em sete dias, todas em solitário: Iliniza Norte (5126 m, 18/01/2011),
El Corazón (4791 m, 19/01/2011), Cotopaxi (5897 m, 21/01/2011) e o famigerado
Chimborazo (6310 m, 25/01/2011).
Chimborazo: "En
el castillo del monstruo"
No domingo liguei para o Rodrigo
Donoso, experiente montanhista equatoriano que, até um ano atrás, era o
responsável pelos refúgios do Chimborazo. Eu conheci Don Rodrigo há dez anos,
quando escalei o Chimborazo pela primeira vez. Ele também possui uma
interessante pousada instalada na estação ferroviária desativada de Urbina, a
uns 25 km de Riobamba, a Posada La Estación. Combinei com ele o transporte para
o refúgio para a segunda-feira à tarde e reservei um quarto na pousada para o
dia seguinte. Cheguei em Riobamba umas 13:00, mandei um frangão assado para o
estômago e parti para o refúgio, em seguida, com um funcionário do Rodrigo.
No Chimborazo o carro chega até o
primeiro refúgio, conhecido como Refúgio Carrel, a 4800 m. Duzentos metros mais
acima está o Refúgio Whymper. Os refúgios têm esses nomes em homenagem aos
primeiros escaladores que alcançaram o cume deste gigante andino. O clima
estava parecido com o do Cotopaxi: entrando no Parque Nacional onde está o
Chimborazo não era possível se avistar nada. Se eu já não conhecesse aquelas
paragens não acreditaria que, na minha frente, estava um respeitável "seis
mil" me aguardando. Confesso que preferi assim, o Chimborazo tem uma
imponência intimidadora e, até mesmo, assustadora. É uma montanha que eu
respeito muito. Na verdade, eu respeito muito qualquer montanha, mas esta tem
alguma coisa de especial. Não sei se são as inúmeras "lápides"
colocadas em volta dos refúgios, na verdade placas em memória aos diversos
montanhistas que perderam a vida ali, que trazem esta estranha percepção. Só
sei que se tem a sensação de proximidade de algum monstro. Notei que algumas
destas placas tinham datas posteriores à última vez que eu estive lá...
Esta seria minha terceira
tentativa no Chimborazo. Nas outras duas vezes eu subi com guias equatorianos e
as condições estavam impraticáveis, muito gelo instável e quebradiço, impedindo
o avanço acima do El Castillo. Desta vez me propus a escalar em solitário,
assumindo os riscos que já conhecia bem. É impressionante o respeito que os
montanhistas equatorianos também têm por essa montanha. Quando estava no
Cotopaxi ouvi os guias usando a expressão "serious climbing" para
designar sua ascensão. Também me lembro do sr. Bladimir Gallo falando do
Chimborazo como uma "montanha complexa". Refletindo sobre sua rota
normal, que geralmente é graduada como PD/PD+ me dei conta de como a escala alpina francesa, utilizada
isoladamente, não é suficiente para caracterizar a dificuldade de uma rota de
alta montanha. Talvez seja necessário agregar outros fatores, do mesmo modo que
a escalada em paredes incorporou, além do grau técnico da via (crux e grau
geral), elementos como o grau de exposição, duração e grau dos lances em
artificial.
No caso do Chimborazo, a rota
normal pode ser dividida em duas partes. A primeira corresponde ao setor abaixo
do El Castillo e a segunda parte a aresta acima do El Castillo e o longo
glaciar que dá acesso aos cumes Veintimilla e Whymper (cume principal).
A primeira parte da rota possui
algumas variantes, utilizadas conforme as condições da montanha permitem.
Atualmente, do mesmo modo que a seis anos atrás, inicia-se a ascensão por uma
trilha à esquerda do refúgio que segue a porção esquerda do glaciar Thielman.
Esta trilha está relativamente bem marcada por totens de pedra e sobe em uma
inclinação cada vez mais acentuada, até atingir os primeiros trechos de neve e
gelo, cujo nível inicial também varia, dependendo das condições do glaciar. A
principal característica de todo este setor é a composição mista de rocha, gelo
e neve. Pode haver de tudo e é preciso dominar um conjunto variado de técnicas
para pode passar com segurança, principalmente se o gelo predominar. Também é
importante estar acostumado a escalar trechos mistos com crampons, pois não dá
para descalçá-los toda vez que surgem rochas pela frente, para calçá-los
novamente em seguida.
A rota segue, mais ou menos, na
parte central do setor formado pela parede esquerda daquela face da montanha,
onde se encontra o El Castillo na parte superior, e o glaciar Thielman, à
direita. Quando se aproxima de alguns seracs, é preciso fazer uma volta brusca
para a esquerda na base destes blocos de gelo, em direção ao El Castillo,
buscando atingir a aresta NE/E que conduz ao imenso glaciar do cume
Veintimilla. O El Castillo é uma grande formação de rochas instáveis e
empilhadas no início da aresta NE/E, lembrando o formato de um castelo. Existe
uma grande ocorrência de quedas de rochas, alguma imensas, principalmente após
o amanhecer. A primeira vez que fui ao Chimborazo a rota era mais direta e saía
do refúgio bem à esquerda, buscando chegar mais rápido à parede do El Castillo.
De lá subia-se ao lado da parede, sendo necessária uma pequena escalada técnica
de rocha e gelo. Apesar da vantagem de se ganhar altitude rapidamente e
encurtar a aproximação com a aresta, esta variante é pouco utilizada por estar
na "linha de tiro" do gigante, que cospe seus imensos projéteis
rochosos bem ali. Se existe algum monstro no Chimborazo, certamente o El
Castillo é a sua morada.
Eu diria que esta parte inicial é
bem complexa, não pelo grau isolado dos lances necessários para galgá-la, mas
pelo "conjunto da obra" e pelos perigos envolvidos. Em diversos
pontos uma queda é fatal, ou de consequências bem desagradáveis, além do risco
de se cair alguma "coisinha" em sua cabeça. Nenhum sistema de
graduação consegue refletir esta complexidade, havendo o risco de se colocar,
em uma mesma categoria, montanhas de níveis de risco bem distintos.
Quando se chega na aresta a
escalada muda completamente, sobretudo ao se atingir o glaciar. A principal
dificuldade da segunda parte da rota é a inclinação constante de uns 45 graus
até o cume Veintimilla, diferentemente do Cotopaxi, onde os inúmeros zig-zags
suavizam a pendente. Outros riscos se escondem no Chimborazo. Pode haver muito
gelo nesta encosta, aumentando não somente a dificuldade técnica, mas tornando
fatal qualquer queda devido à quase impossibilidade de se detê-la nesta
pendente acentuada. Também existem riscos reais de avalanches com o acúmulo de
neve nas partes superiores do glaciar.
Eu devo ter chegado ao refúgio
Carrel pouco depois das 16:00. Como minha intenção era dormir mais alto, calcei
as botas duplas e parti em seguida para o Refúgio Whymper. Normalmente, pela
sua maior dificuldade, o Chimborazo é bem menos frequentado do que o Cotopaxi
e, nesta noite, seriam 2 cordadas lideradas por guias equatorianos, uma formada
por tchecos e canadenses e a outra por um guia de Quito com um gringo cuja
nacionalidade não fiquei conhecendo, além de minha tentativa solo,
evidentemente. Havia também um suíço com seu guia no Refúgio Carrel que
pretendia subir a partir deste refúgio, mas não os vi na montanha. Creio que
avistei suas luzes abaixo de mim, mas devem ter desistido antes do El Castillo.
Cheguei no refúgio Whymper,
deixei tudo preparado para a empreitada noturna e fui fazer os procedimentos
tradicionais que antecedem um ataque ao cume: hidratar, comer e relaxar. Conversei
um pouco com os tchecos sob os olhares desconfiados de seu guia equatoriano.
Eles pretendiam sair às 23:00, bem antes de mim. Eu optei por acordar às 23:45
e iniciar a ascensão à meia-noite e meia. Fui dormir pouco depois das 18:00 e o
tempo continuava fechado. Estava confiando nos prognósticos de tempo bom para a
madrugada e fui dormir tranquilo.
Acordei no horário programado,
fiz meus últimos preparativos, comi um pouco e saí 00:30, pontualmente. O céu
estava estrelado e não havia vento, bom sinal! Avistei luzes bem acima do
refúgio, provavelmente da cordada dos tchecos e canadenses. O guia de Quito
saiu com seu cliente alguns minutos antes de mim, mas em uns 15 ou 20 minutos
eu já os havia ultrapassado. Estava muito concentrado e me sentia bastante
preparado, física, técnica e psicologicamente. Estes níveis de concentração são
uma das coisas mais incríveis, e indescritíveis, do montanhismo. Quando consigo
atingir este "estado de espírito" me sinto muito bem, uma espécie de
força mental que aumenta os níveis de percepção e, de certo modo, de intuição,
fazendo com que eu fique bem alerta a tudo.
Fui seguindo os totens de pedra
e, em pouco tempo, já havia bastante neve na trilha, apesar de não ter chegado,
ainda, ao glaciar. Em menos de uma hora alcancei uma rampa mais inclinada, que
reconheci, pela experiência de 6 anos atrás, como sendo o acesso lateral do
glaciar Thielman. Naquela ocasião havia somente gelo neste trecho e tivemos que
desistir logo adiante. Agora as condições eram boas, com uma neve bem firme e
consistente. Hora de colocar os crampons...
A rota também estava bem marcada,
até porque havia uma cordada na minha frente. Subi seguindo aqueles indícios,
que se dirigiam para o lado direito da rampa. Eu sabia que, mais acima, deveria
fazer um contorno acentuado para a esquerda, só não tinha certeza sobre a
altitude em que a rota faz este desvio em direção ao El Castillo. Por isso, fui
subindo, sempre acompanhando as marcas na neve. Até que me dei conta que já
estava quase chegando aos seracs que eu deveria contornar pela esquerda. A
intuição me dizia que estava errado e havia três opções: escalar os seracs,
contorná-los pela direita ou voltar. Como a volta significava descer e perder
altitude, optei pelo que, aparentemente, me parecia mais fácil, um desvio pela
direita. Mas o terreno foi ficando cada vez mais difícil e, quando percebi,
estava em cima de uma fina camada de terra com um gelo duríssimo embaixo, no
qual os crampons não penetravam, em uma inclinação de uns 45 graus. Perigoso,
muito perigoso! Fui cramponando delicadamente e desci em diagonal para sair
dali e raciocinar um pouco.
As marcas na rota subiam até
perto de onde eu estava. Mais acima o que havia eram sinais de quedas de rocha.
Provavelmente alguém havia subido até ali e retornado, o mais óbvio era descer
e buscar uma saída pela esquerda, mais abaixo, em direção ao El Castillo. Nisso
vi as luzes da cordada do guia de Quito. Estavam longe, por isso desci mais um
pouco e esperei por eles. Quando estavam mais próximos perguntei ao guia se a
rota era por ali e ele disse que sim, que tínhamos que subir até os seracs.
Subi pela segunda vez aquele trecho, mas não estava disposto a buscar novamente
um caminho pela direita. Comentei com o guia as péssimas condições da parte
direita dos seracs e ele concordou, dizendo que teríamos que encontrar um
acesso por sobre os seracs para, então, depois de escalar este obstáculo de
gelo, virarmos à esquerda para subirmos em direção ao El Castillo. Encontramos
um serac mais baixo e o guia me pediu que eu o testasse. Tirei meu piolet
técnico da mochila e lá fui eu, solando aquele pedaço de gelo. Havia uma fina
camada de neve no serac que me permitia, com um equilíbrio bastante delicado,
cramponar frontalmente e tracionar os piolets sem penetrar o gelo. Até que a
camada de neve acabou e constatei que o gelo era duríssimo. Teria uns 3 ou 4
metros a vencer, ainda, sem nenhum tipo de proteção ou segurança, já que não
estava encordado. Até que o guia me chamou e disse que era melhor não subir por
ali com seu cliente, que parecia pouco disposto a isso.
Então me decidi a fazer o que já
havia pensado quando desci dali pela primeira vez: buscar um caminho pela
esquerda dos seracs. Desci da mesma forma que subi, delicadamente, como se
estivesse pisando em ovos. Cheguei na base dos seracs e fiz uma diagonal para
baixo, direta, buscando a parte esquerda dos blocos de gelo. Fiz isso o mais
rápido que pude, pois estava perdendo muito tempo. Em poucos minutos
reencontrei uma neve de qualidade e, para minha alegria, sinais evidentes da
rota, bem na esquerda dos seracs. Olhei para o relógio e fiquei preocupado: já
eram 03:00, havia perdido mais de uma hora neste trecho! Além do tempo
desperdiçado, havia gasto uma energia preciosa subindo e descendo duas vezes um
desnível de mais de 50 m. E teria que recuperar estes metros pela terceira vez,
mas agora na rota correta. Gritei para o guia alertando-o do caminho a seguir e
toquei para cima, buscando minimizar um pouco o prejuízo.
Em pouco tempo me aproximei do El
Castillo e da aresta. Quanto mais próximo da aresta, mais inclinado ficava o
terreno. A neve sumiu e tive que subir de crampons por cima de uma mistura duríssima
de terra e pedras congeladas. Até que subir não era tão difícil, este trecho
iria se mostrar bastante crítico na descida. Ao chegar na aresta senti um certo
alívio, pois a rota ali parecia bem tranquila e havia bastante neve. Segui a
aresta que, em alguns pedaços, era bastante estreita, desviando-me de alguns
obstáculos rochosos. Até esbocei um sorriso, lembrando-me da "maldita
aresta" do El Corazón. Essa aqui está moleza, perto daquela coisa instável
e traiçoeira.
Mas tive que engolir meu sorriso
logo depois, ao avistar a longa subida pelo glaciar. Consultei meu altímetro e
ainda faltavam mais de 700 metros até o cume. Fiz um último descanso, me
lembrando que aquele glaciar era contínuo e que não teria outra oportunidade
para tal. Acima de mim as luzes da cordada que me antecedeu. E, mais à direita,
uma outra luz, mais forte e misteriosa, despontava da parte superior da
montanha: era a lua que, mesmo minguante, iluminava fortemente aquelas encostas
inóspitas e geladas.
Comecei a subir pelo glaciar,
provavelmente por volta das 04:30. Haviam trechos de neve profunda e outros de
neve bastante dura. É uma parte da montanha que exige muito, tanto fisicamente,
quanto psicologicamente. Foi aí que a dupla que me seguia desistiu, não sei nem
se chegaram até a metade do glaciar, pois haviam ficado bem para trás. Não há
muito o que dizer sobre a subida até o cume Veintimilla, apenas que o cansaço
vai se confundindo com uma espécie de monotonia tediosa, uma sensação de sempre
subir e nunca chegar. O mais incrível era não avistar, devido à curvatura do
glaciar, a cordada dos tchecos e canadenses que não estava muito distante de
mim. Os trechos de neve dura também faziam com que os indícios da rota,
eventualmente, desaparecessem. Gosto da solidão da montanha, mas aqui os sinais
efêmeros da presença humana faziam da solidão uma espécie de desolação. O
Chimborazo é duro, realmente duro...
Quando amanheceu identifiquei uma
imensa greta à esquerda do glaciar. Esta deve ser a greta Hans Meyer, pensei,
lembrando-me de um croqui que havia visto em um livro que comprei em Quito. Já
devo estar próximo ao cume Veintimilla, concluí. Que nada, ainda faltavam mais
de 200 m pelo meu altímetro. Subitamente me deu uma vontade de gargalhar, que ideia
é essa, homenagear alguém dando seu nome a uma greta!
Continuei subindo e, finalmente,
vislumbrei um ponto mais acentuado que parecia ser algum cume. Foi quando
avistei uma cordada descendo: eram os tchecos e canadenses. Rápidos
cumprimentos e parti para o trecho final daquele quase infinito glaciar.
Cheguei ao cume Veintimilla por volta das 07:30. Mas ainda não havia terminado.
O Veintimilla é um cume secundário, com 6267 m de altitude. Normalmente, as
ascensões guiadas vão somente até esse cume e com a cordada que me antecedeu
não foi diferente: não havia nenhuma marca em direção ao cume Whymper, o
principal. O cume Whymper tem 6310 m, ou seja, uns 50 m mais alto do que o
Veintimilla. O problema é que um pequeno vale separa os dois cumes e deve-se
descer para depois subir novamente, aumentando para quase 100 metros o desnível
final.
Estava tão determinado que nem
parei para descansar, ou fotografar, no cume Veintimilla. Comecei a descer,
torcendo para que a neve, daí por diante, estivesse bem firme. Vã esperança! Os
primeiros metros foram bem fáceis, mas, à medida em que eu avançava, encontrava
trechos de neve extremamente fofa, afundando até o joelho. Quando alcancei a
base do cume Whymper sabia que teria mais 100 metros para vencer. Estava
realmente muito cansado, havia sido uma ascensão duríssima, mas sabia que ainda
tinha bastante energia para chegar ao cume principal, bastava ter paciência e
não me precipitar. Fui, então, subindo da forma mais delicada possível. Às
vezes dava certo, era possível concluir uns 5 ou 6 passos mantendo-me na
superfície daquela "sopa" de neve. Mas logo meu peso desfazia a
camada mais rígida e eu atolava novamente. Tentei zig-zags, zig-zigs e zag-zags,
mas nada funcionava perfeitamente. Cada passo era como um castigo, cada metro
uma pena. Purguei, assim, todos os meus pecados, ou quase todos, tenho muitos.
Mas estava ganhando altitude e o
cume se aproximava, era questão de tempo. Repentinamente a curvatura suavizou e
avistei um grande platô: era o cume! Mas ainda havia o que subir e a neve
estava cada vez mais fofa. Tentei identificar algum marco que definisse o cume,
mas nada. A subida foi se transformando em um aclive de inclinação cada vez
menor, até que percebi que estava andando na horizontal. Parecia que havia uma
pequena circunferência neste ponto, mas se aquilo serviu em algum momento como
marco, agora estava completamente coberto pela neve.
Estava no cume, mas não tinha
forças nem para chorar!!! Havia superado o monstro e derrotado a mim mesmo:
meus medos e meus anseios...
Agora é fácil,
retrospectivamente, costurar estas lembranças em uma narrativa linear. Mas
nestes últimos cem metros o que eu pensava, ou pensava que estava pensando,
eram ideias esparsas e desconexas, que sempre conduziam a uma sensação extrema
de cansaço.
E agora compreendo o sentido
daquelas palavras de Fernando Pessoa que me remetem, também retrospectivamente,
para esta incrível sensação de cume: "Porque
eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura".
Sentei no chão, tirei minha
mochila e me dediquei a curtir a paisagem, buscando as já familiares
referências visuais. Na minha confusão mental troquei o Cotopaxi com o Sangay e
tudo se tornou mais confuso ainda, até que, desfeito o engano, passei a
identificar todas aquelas montanhas e vulcões. Lembrei-me, então, de fotografar
e filmar o cume. Busquei, em vão, uma referência segura que comprovasse onde eu
cheguei. Levantei-me, peguei a filmadora e fiz uma tomada de 360 graus, numa
tentativa de demostrar que estava no ponto mais alto. O mesmo procedimento
adotei com a câmera fotográfica. Como não havia nenhuma rocha ou algo mais
elevado onde colocar a câmera, desisti das tradicionais fotos com bandeiras e
me contentei em capturar meu rosto com o fundo branco do platô do cume.
Sentei-me novamente, fechei os
olhos, sonhei acordado e acordei com aquela visão de sonhos, saboreando
deliciosamente toda a beleza ao meu redor.
"E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica
objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer
cantando. 'Sou do tamanho do que vejo!' (...) Tenho vontade de erguer os braços
e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer palavras aos mistérios
altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria
vazia". (Fernando Pessoa)
Após mais alguns minutos comi uma
barra de cereal, me hidratei e comecei o longo retorno. A monótona subida havia
se convertido em, adivinhem: uma entediante descida. Para descer em segurança
aquela inclinação é necessário estar familiarizado com a cramponagem francesa,
além de estar com a musculatura das pernas "em dia", uma tarefa árdua
depois de subir aquilo tudo. Fui alternando os lados do corpo, a medida em que
os músculos das coxas, literalmente, começavam a queimar. Mas estava fazendo um
bom progresso. O que eu havia demorado 4 horas para subir, desci em apenas uma.
Quase no final do glaciar o tempo
começou a mudar, e para pior. Uma espessa nuvem encobriu a aresta para onde me
dirigia e, aos poucos, me vi envolvido em um branco quase total. Reduzi o ritmo
na esperança de que a visibilidade melhorasse, pois temia errar a direção da
aresta e sair do outro lado da montanha ou, o que seria pior, descer por engano
pelo glaciar Thielman com suas gretas escondidas. A estratégia deu certo e uma
rápida abertura na cortina de nuvens me permitiu ajustar minha direção e chegar
em segurança na aresta.
Percorri a aresta até o ponto
onde termina a neve e, como teria que descer um bom trecho de rochas na encosta
do El Castillo, tirei os crampons. Foi preciso somente um passo para me
esparramar no chão: havia uma camada de pequenas pedrinhas redondas em cima de
uma terra congelada que não fornecia nenhuma aderência. Era como caminhar por
sobre milhares de bolinhas de gude. Tive que colocar novamente os crampons e
não é que funcionou! Com os crampons as "bolinhas de gude" não me
derrubavam e comecei uma descida forte buscando uma língua de neve que eu
visualizava mais abaixo na encosta.
Nesta língua de neve, que
facilitava a descida, percebi muitas pisadas indo em direção à parede lateral
do El Castillo. Sem pensar muito comecei a descer rapidamente por ali, já que
estava mais fácil do que me dirigir aos seracs lá embaixo à esquerda, por onde
havia subido. Repentinamente olhei para cima e tive uma das visões mais
aterradoras de toda essa escalada: vi, nitidamente, como o El Castillo era
formado. Eram milhares e milhares de pedras encaixadas e equilibradas,
esperando sua vez de cair. Ao redor, milhares de outras rochas que já haviam
cumprido sua missão de projéteis voadores. Tive aquela sensação de que tinha
que sair dali, imediatamente. Comecei a descer pela rota paralela à parede,
pois era mais rápido do que subir novamente. Identifiquei, prontamente, aquele
trecho como o caminho pelo qual havia subido na minha primeira tentativa, dez
anos atrás. Sabia que havia um trecho vertical em algum lugar e torcia para que
ele fosse fácil para desescalar.
Quanto mais descia, mais
inclinado ficava. Surgiu o gelo e tive que a cramponar à francesa novamente.
Até que me deparei em uma situação extremamente crítica: estava na borda de um
lance vertical de uns 10 metros, no mínimo. Procurei alguma rocha mais firme
para me estabilizar, mas nenhuma agarra confiável me deu a mão. Só podia contar
com a força de meus músculos das coxas para me manter ali. Olhei para baixo e
percebi que seria uma desescalada bastante difícil, rocha e gelo vertical. Mas,
para iniciar a descida, eu teria que virar-me para a parede e tirar o piolet
técnico da mochila. Eu estava com minha cadeirinha de escalada, justamente para
eventualidades como essa, e havia levado um tornillo (parafuso) de gelo. Peguei
o tornillo e coloquei-o no gelo, para criar um ponto de ancoragem onde pudesse
girar meu corpo, posicionando-me para a descida, e me possibilitasse descansar
um pouco. Mas o gelo já estava pouco sólido naquela hora do dia e seria
bastante perigoso confiar em tal proteção.
Não tive escolha. Equilibrei-me
totalmente nos calcanhares, tirei minha mochila das costas, peguei meu piolet
técnico, cravei-o no gelo ao meu lado, girei o corpo e comecei a subir
novamente, não iria arriscar a descer por ali. Olhei para cima uma vez mais e
visualizei aqueles blocos imensos, aguardando que a gravidade os despertasse de
seu precário repouso. Subi o mais rápido que pude, cramponando frontalmente e
tracionando os piolets. Quando já havia vencido a parte mais íngreme, fiz uma
diagonal para direta e me afastei da linha de tiro do El Castillo, indo em
direção aos seracs onde estava a rota normal.
Após chegar nas proximidades dos
seracs retomei a direção por onde havia subido e desci por aquele labirinto de
pedras, neve e gelo. Se chegar ao cume me tomou umas 8 horas, voltar para o
refúgio me consumiu umas cinco. Chegando no refúgio Whymper avisei rapidamente
ao responsável que já estava de volta, em segurança. Sem tempo para descansar,
coloquei todas as minhas coisas na mochila cargueira e me dirigi ao refúgio de
baixo, onde o carro já devia estar me aguardando.
Nesta noite dormi o "sono
dos justos" na Posada La Estación. No dia seguinte retornei a Quito, após
uma breve caminhada pelos trilhos desativados, e resolvi me dedicar ao ócio.
Após uma quinta-feira dedicada a compras e devaneios culturais não resisti: fui
na sexta-feira para o Parque Nacional Cayembe-Coca e fiz uma caminhadinha de
uns vinte e poucos quilômetros, para esticar as pernas e fechar a viagem com
chave de ouro. Adeus paisagens andinas, em breve nos reencontraremos...
Também aproveitei o tempo que me
restava no Equador para colocar algumas leituras em dia. Lendo um pouco de
Rimbaud me deparei com a seguinte passagem, perfeita para fechar esse relato:
"Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso;
pela máscara, me julgarão raça forte. Terei dinheiro; vou ser ocioso e brutal.
As mulheres cuidam dos ferozes doentes de volta dos países tropicais. Entrarei
nos negócios políticos. Serei salvo. Por ora sou maldito, tenho horror da
pátria. O melhor é um sono bem bêbado na praia". (Arthur Rimbaud, Uma
temporada no inferno)
Bem, esse negócio de entrar para
a política não me agradou não, mas a ideia de tomar umas cervejas e dormir em
uma praia equatoriana até que era boa. Fica para a próxima.
Dedico estas escaladas à memória
de meu amigo Sérgio "Magal", que curtia, e se divertia, com os
relatos das peripécias desse tal de Marcelo "Default".
Álbum de fotos:
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Vídeo da expedição:
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